Índice
Resumo e Método
O presente trabalho
constitui-se de uma breve pesquisa bibliográfica sobre a concepção da ética em
Schopenhauer e Nietzsche. Ambos considerados sob o prisma do irracionalismo,
negando a primazia da razão para a compreensão do fenômeno humano e propondo o
eixo vontade/potência como novo extrato ético.
Sendo impossível
aprofundar a questão do ético em Schopenhauer e Nietzche em um trabalho como
este, optei por abordar o tema de forma sucinta. Extraí algumas citações de
ambos os filósofos e as comentei. Vi-me dependente, em extremo, dos
comentaristas de suas obras, os quais me serviram de Hermes. Sendo alemães,
pensaram e escreveram de forma hieroglífica. Seus tradutores discordam do
sentido de muitos termos utilizados, o que mais dificulta a aproximação de suas
filosofias. O que resta, é confiar na bibliografia que os trouxe a nós, e
admirar com luneta o que só um potente telescópio poderia decifrar.
“Não há dúvida de que a transformação da modéstia em virtude foi de
grande vantagem para os idiotas...” Schopenhauer
“que venha o vento quente do outono para que caiam mais depressa das
árvores os frutos apodrecidos” Nietzsche
1. Prólogo
Schopenhauer e Nietzsche são
dois picos de montanhas. Surgem no cenário da filosofia a contragosto da
Academia. Alemães, solitários, críticos, sarcásticos, altivos e des-construtores
da ética normativa. Passam em revista a filosofia de então e soerguem-se contra
ela. Mas não andam juntos. Enquanto o primeiro é apresentado como pessimista, o
último se mostra para “além do bem e do
mal”. O humor de ambos é diferente. O filósofo do Mundo como Vontade e Representação (ou Ideal) se afasta das
pessoas, mas o criador da Vontade de
Potência (ou Poder) as afasta. Quem se aproxima de Schopenhauer é logo
evitado e quem procura Nietzsche logo o evita. Falam e não são ouvidos,
escrevem e não são entendidos. “Quando
uma cabeça e um livro se chocam – provoca Schopenhauer – e um deles produz um som como se estivesse
oco, é sempre o livro?[1]”
Nietzsche piora: “Quem conhece o leitor,
já nada faz para o leitor. Mais um século de leitores, e o próprio espírito
terá mau odor[2]”.
2. Princípio Ético em Schopenhauer
A Europa do século XIX
está sendo chamada de volta à piedade cristã. O Século das Luzes gerou Newton,
Berkeley, Hume, Vico, Voltaire, Diderot, Montesquieu, Rousseau, Kant, Fichte,
Goethe, Schelling e Hegel. Esses ilustrados formaram pelotões de racionalistas,
empiristas, idealistas, utilitaristas e românticos. Testemunharam o apogeu do
humanismo e seu antropocentrismo, assim como endossaram o absolutismo e o
republicanismo. Sofreram com guerras e revoluções, endeusaram a Razão e arruinaram
o mundo com seu otimismo iluminista. Não puderam cumprir o que prometeram e entregaram
a Schopenhauer um universo destruído o qual...
“... viajando pela França e pela
Áustria em 1804, ficou impressionado com o caos e a sujeira das aldeias, a
miserável pobreza dos agricultores, a inquietação e miséria das cidades. [...]
Seria um brado para que o intelecto penitente se curvasse diante das
antiqüíssimas virtudes da fé, esperança e caridade?[3]”.
Schopenhauer não cede aos
apelos da religião, contudo, busca nela uma fonte ética para sua Contribuição à Doutrina do Sofrimento Do
Mundo. Em suas palavras “nossa
receptividade para a dor é quase infinita, aquela para o prazer possui limites
estreitos[4]”. O
homem estaria naturalmente pronto para o sofrimento e despreparado para o
prazer. É justamente este o brado da religião: o sofrimento traz vida, o prazer
provoca morte. Não é uma ética estóica, de indiferença pela dor, é uma
adequação da physis com o nous, da natureza com o entendimento. O
irracionalismo em Schopenhauer se caracteriza pela reorganização das
hierarquias epistemológicas. Se antes a Razão ocupava o primeiro posto, agora
ela subordina-se a Vontade. “Nós não
queremos uma coisa [como o sofrimento] porque
encontramos motivos para ela, encontramos motivos para ela por que a queremos[5]”
3. Quereria o homem sofrer?
Desde os primórdios a filosofia se embate com a questão da
felicidade X sofrimento. Bernadette Siqueira afirma que “para Aristóteles, a causa final do homem, seu objetivo supremo, é a
felicidade [a qual] obtém-se por meio
da vida contemplativa, uma vida intelectual sossegada, longe das perturbações
do cotidiano [6]”. Mas
Will Durant interpola a tradição filosófica ao escrever que “quase sem exceção, os filósofos colocaram a
essência da mente no pensamento e na consciência [o que para Schopenhauer
foi um] “enorme próton pseudos[7]”.
Não é no pensamento que reside o problema ético, mas na vontade, ou seja, na physis, não no nous. A physis suporta a
dor e o sofrimento com naturalidade, sendo a busca da felicidade uma fuga
racional antinatural, daí, o agravamento da questão ética. Se em minha tabela
de erros e acertos inverto os valores e tomo o sofrimento como acidental,
enquanto valoro a felicidade ao lado do correto, estarei em constante conflito
com a natureza das coisas. Observarei o fenômeno (Kant) e abstrairei um “juízo
de valor polarizado e antinatural”. Surgirá a dúvida onde haveria certeza,
questionamento no lugar da resposta, culpa ao invés de paz. Eu chamaria
sofrimento o que não é e buscaria a felicidade sem nunca a encontrar.
“Como nós não sentimos a saúde de
todo nosso corpo, mas o pequeno local onde o sapato nos aperta, assim também
não pensamos na totalidade de nossos interesses que vai perfeitamente bem,
porém em qualquer insignificância que nos aborrece. Nisto se baseia a
negatividade do bem-estar e da felicidade, muitas vezes ressaltada por mim e
oposição à positividade da dor[8]”
A ética de Schopenhauer
não é pessimista - é trágica. Não sentimos a felicidade na dor por que antes de
vivermos, filosofamos, racionalizamos, apolinariamos o sofrimento, e dentro das
linhas apolíneas, o sofrer faz mal e é anti-natural. A razão chama o prazer no
sofrimento de masoquismo (se em mim) e de sadismo (quando no outro).
Schopenhauer (e Nietzche) quer voltar ao irracionalismo, afirmando que a coisa
é natural quando não se constrói o artifício lógico (de Apolo), mas se vive a
coisa (como em Dionísio[9]).
Schopenhauer é melancólico ante o mundo que herdou não um pessimista. Fala dos
azares no sentido que “consideramos as
alegrias bem abaixo [e] as dores bem acima de nossa expectativa”.
O problema está na
perspectiva que temos das coisas. O bem estar e a felicidade são negativos ao
entendimento do mundo, uma vez que põe o homem em estado de euforia e
contentamento, maquiando a angústia causada pelo sofrimento[10].
Esta felicidade mundana é uma farsa ante o quadro real de um mundo construído
em cima guerras e revoluções. É onde aperta o sapato! A dor se mostra grande
ante um sofrimento instantâneo, mas quando prolongada ao longo de uma
existência, já não é tão importante. Quando nascemos soltamos um grito
alucinante de dor, porquanto o oxigênio dilacera nosso pulmão desacostumado com
a dor da respiração. Uma vez acostumados com a dor, já não choramos. A dor
ainda existe, mas está em estado de natureza, irracionalizada, vivida no corpo,
não na mente.
O sofrimento causa compaixão
nos cristãos, e a compaixão incomoda Schopenhauer. Ele quer que os homens
sintam suas dores, que sejam incomodados pelo sofrimento e encarem o mundo por
si mesmos, sem ajuda externa, de anjos, homens ou Deus, pois a morte está no zênite
de todo ser vivente, seja animal ou humano. Enquanto para o animal a morte é
nada, para o humano é um infortúnio e deve ser encarada como obstáculo a ser
vencido. É a faticidade da morte que permite ao humano transcender sua
animalidade, o qual “cresce muito mais [...]
a medida da dor do que a do prazer[11]”.
Ou, nas palavras de Nietzsche: “Com todo
o crescimento do homem em grandeza e elevação, cresce ele também no profundo e
terrível[12]”.
4. Nietzsche, uma releitura de Schopenhauer?
Doutor Mário diz que
Nietzsche dormia menos de quatro horas
por dia a fim de ler as duas mil páginas do impressionante escrito de
Schopenhauer sobre o Mundo como Vontade e Representação[13].
Esta leitura estragou o mundo. Seguindo de perto a metodologia de Kierkgaard -
que perdeu o sono lendo Abraão – o jovem prussiano perdeu dois anos com a
leitura de Schopenhauer.
“Através da obra nietzcheana
ver-se-á sempre uma influência preponderante das idéias de Schopenhauer,
inclusive nos pontos em que se rebela contra toda interpretação pessimista.
Embora refutando Schopenhauer, Nietzche nunca se liberta do veneno sutil que
ele goteja em sua alma[14]”
Schopenhauer estragou
Nietzsche, e Nietzsche, fez o resto. Se a proposta do Mundo como Vontade e Idéia era um retorno ao trágico da vida e ao
irracionalismo de Dionísio, a proposta do que Falou Zaratustra na Vontade
de Potência do Anticristo para Além do Bem e do Mal era uma concepção da ética pelo prisma
do Humano, Demasiadamente Humano. O
conjunto das obras nietzcheanas espeta a moral das coisas, não lhes permitindo
permanecer em estado de Lótus. Foi uma vingança do pequeno órfão contra o Deus
que lhe provocou. Uma imitação do Ulisses prussiano contra o Poseidon cristão,
e “a maior parte de sua obra foi escrita
de modo aforismático [...] por isso, não haja nada mais difícil [...] do que
apreender o que seria o seu projeto[15]”.
O projeto nietzcheano é
um continuísmo do schopenhauriano: desconstruir a ética formalizada em torno do
“tu deves” e reconstruí-la a partir
do “tu queres”. Se a questão ética
gravitara do nous à physis e oferecera outro eixo para o
problema do bem e do mal, Nietzsche não tornaria atrás. Ele
provocará a moral até emancipá-la ao “eu
sou”.
“Compreenda-se:
nossa civilização passou primeiro pelo domínio do ‘tu deves’, quer dizer, pelo
primado da moral e da religião; esta primeira etapa do espírito cede lugar ao
domínio do ‘eu quero’, que designa o eclipse do mundo do dever e a liberação da
vontade; enfim, o ‘eu quero’ supera-se no ‘eu sou’, uma nova relação do
indivíduo com sua existência. Para apreender do interior estes períodos, vale
apena situar-se na etapa intermediária – do domínio do eu quero[16]”.
5. Princípio Ético em Nietzsche
“Subi aos vossos navios! O que necessitamos é de uma nova Justiça! E de
uma nova libertação. E de novos filósofos! A terra moral é redonda, também. E a
terra moral possui seus antípodas. E os antípodas também têm seu direito à
existência. Há um mundo novo ainda por descobrir e até mais de um! Aos vossos
navios, todos a bordo, filósofos![17]” Nietzsche,“Gaya
Scientia”
Em Gaya Scientia o
princípio ético é figurado pelo mar desconhecido. O novo - a que se refere -
lembra a voz de Ulisses contra os deuses gregos. Assim como a conquista de
Tróia se atribui ao gênio do humano, a nova ética seria uma conquista dos novos
justos, dos novos filósofos. Para tanto, é preciso navegar no mar do Poseidon
cristão, enfrentá-lo e vencê-lo. A forma como a convocação ao embarque lembra
os discursos napoleônicos é insigne: “Soldados!
Sois uma das asas do exército da Inglaterra. Fizésseis a guerra nas montanhas,
nas planícies e nos rios; resta-nos somente a guerra marítima[18]”.
Nietzsche é Napoleão, e sua revolução contra a ética e a moral judaico-cristã é
do mesmo quilate que a revolução contra os mamelucos de Alexandria:
“Dir-vos-ão que venho para destruir a vossa
religião, mas não acrediteis. Respondei que vim para restabelecer vossos
direitos e para castigar vossos usurpadores, e que eu respeito, mais que aos
mamelucos, a Deus, a seu profeta e ao Alcorão[19]”. Napoleão
“A refutação de Deus... Realmente o Deus
moral é que está refutado”. Nietzsche
A
questão ética é uma questão moral em Nietzsche. A moral dos judeus e cristãos
católico/protestantes, baseada na Bíblia e na tradição da Igreja. É a moral de
um Deus morto, que não corresponde com a vida humana conforme vivida nos
estratos da sociedade comum. Serve de máscara e justificativa para a
mediocridade e indigência humana. Esta moral prende a humanidade a um desnível
existencial em relação as suas potencialidades, e tal prisão precisa ser
aberta. O problema é que os religiosos detêm as chaves da cadeia, e não
encontram rival que os vença e liberte os encarcerados, até que surge
Zaratustra.
“Aquele
que tiver que ser um criador para o bem e para o mal – na verdade, terá
primeiro que ser um destruidor e fazer os valores em pedaços. Assim, o mal
maior será parte do bem maior. Mas isto é um bem criativo. Falemos sobre isso,
ó homens mais sábios, por pior que seja.
Ficar calado é pior; todas as verdades não expressas tornam-se venenosas. E
seja lá o que for que aconteça à nossa verdade, que aconteça! Ainda há muita
casa para ser construída[20]”.
Zaratustra é o
super-homem de Nietzsche, o que liberta a humanidade para um mundo de
pluralidades, diversidades, ineditismos e aberturas para o irracional. Neste
mundo o dualismo das coisas é equivalente, ou seja, bem e mal são pesos iguais,
não antagônicos, não complementares e não relativos. O sujeito e o objeto se relacionam
trocando de papeis, experimentando o outro, perdendo-se para encontrar-se, e
encontrando-se, perdendo. A verdade aceita o acontecimento como fator de
transmutação e se sujeita a uma reconstrução de si assumindo a forma de
contradição - de verdades. O subjetivismo não faz cara feia para o objetivismo,
pelo contrário, o abraça e beija, o aceita como parte de si e abre um sorriso.
Neste mundo, os deuses riem até morrer.
6. Conclusão
A questão ética em
Schopenhauer e Nietzsche traz um novo corpo para a filosofia. Todo processo de
retorno as origens iniciado no Renascimento permanece em ebulição ao longo dos
séculos. As origens - para esses dois irracionalistas - remontam aos tempos da
tragédia grega, tempo em que a vida era uma guerra, e a guerra era natural ao
homem, assim como a morte, a dor e o sofrimento. Nem por isso a vida era ruim.
O homem da antiguidade celebrava cada dia de sua vida, e o único lastro de
eternidade era sua memória preservada nos cantos dos aedos. Com o advento da
moral judaico-cristã, a vida deixou de ser celebrada e a morte passou a
apavorar os homens. O inferno que igualava bons e maus passou a atormentar os
não cristãos e o viver cedeu lugar ao saber. A ciência ganhou status libertador
e a vida ganhou o peso da culpa.
Schopenhauer e Nietzsche
celebram a vida sem culpa ou medo da morte, um de forma melancólica, o outro,
cantando mofas. O certo e o errado não são valores prontos e exatos, são
conseqüências de escolhas voluntárias, soltas no mundo, longe dos crivos da
razão e do saber. São idéias, representações, vontades e potencialidades. Nada
definido.
7. Bibliografia
ABRÃO, Bernadete Siqueira. História da Filosofia. Ed.
Nova Cultural. São Paulo. 1999
SANTOS, Mario Ferreira dos. Antologia da Literatura Mundial, Famosos
Discurso Estrangeiros.
DURANT, Will. A História da Filosofia. Ed. Nova
Cultural, Rio de Janeiro, 1996
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência, Ed, Escala, São Paulo
PONTE, Carlos Roger Sales de Revista Discutindo Filosofia,
ano2 – nº 10
SANTOS, Mario Ferreira dos. Antologia do Pensamento Mundial. Ed. Logos, São Paulo
SCHOPENHAUER, Artur. O Mundo como
Vontade e Representação, III Parte. Ed. Nova Cultural
[1] Citado
por WILL Durant in A História da
Filosofia. Ed. Nova Cultural, Rio de Janeiro, 1996, p.290
[2] Citado
por Mário Ferreira dos Santos in Antologia
do Pensamento Mundial. Ed. Logos, São Paulo, p.76
[3] DURANT,
Will. A História da Filosofia. Ed.
Nova Cultural, Rio de Janeiro, 1996, p.296
[4]
SCHOPENHAUER, Artur. O Mundo como Vontade
e Representação, III Parte. Ed. Nova Cultural, São Paulo, 1999, p. 277
[5] DURANT, Will. Op. cit, p. 295
[6] ABRÃO,
Bernadete Siqueira. História da
Filosofia. Ed. Nova Cultural. São Paulo. 1999, p.63
[7] DURANT, Will. Op. cit, p. 295
[8] SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit., p. 277
[9] “[O dionisismo] caracteriza-se por ser trágico, pois vê a existência como prazerosa,
alegre, mesmo em meio ao sofrer mais duro, absurdo estranho e questionável que
esta mesma vida comporta. Sem fugir do sofrimento, o homem dionisíaco afirma a
vida indestrutível e jubilosa”. (Revista Discutindo Filosofia, ano2 – nº
10)
[10] Mais
tarde, Heidegger denunciará este estado de “existência inautêntica”, afirmando
que a humanidade está em fuga da faticidade da morte.
[11] SCHOPENHAUER, Artur. Op. cit., p. 281
[12] Citado
por Carlos Roger Sales de Ponte no artigo Isso
é Esparta, (Revista Discutindo Filosofia, ano2 – nº 10, p.11
[13]
Prefácio de Mário Ferreira dos Santos a Vontade
de Potência. Ed. Escala, São Paulo, p.17
[14] idem
[15] ABRÃO,
Bernadete Siqueira. História da Filosofia.
Ed. Nova Cultural. São Paulo. 1999, p.413
[16] idem,
p.415
[17] Citado
por Mário Ferreira dos Santos in Vontade
de Potência, Ed, Escala, São Paulo, p.11
[18] In
Antologia da Literatura Mundial, Famosos
Discurso Estrangeiros, Ed. Logos, 10ª Ed, São Paulo, 1965. p. 221
[19] Idem,
p. 223
[20] DURANT,
Will. A História da Filosofia. Ed.
Nova Cultural, Rio de Janeiro, 1996, p.296