segunda-feira, 30 de abril de 2012

O ético em Schopenhauer e NIetzsche


Índice



Resumo e Método


O presente trabalho constitui-se de uma breve pesquisa bibliográfica sobre a concepção da ética em Schopenhauer e Nietzsche. Ambos considerados sob o prisma do irracionalismo, negando a primazia da razão para a compreensão do fenômeno humano e propondo o eixo vontade/potência como novo extrato ético.

Sendo impossível aprofundar a questão do ético em Schopenhauer e Nietzche em um trabalho como este, optei por abordar o tema de forma sucinta. Extraí algumas citações de ambos os filósofos e as comentei. Vi-me dependente, em extremo, dos comentaristas de suas obras, os quais me serviram de Hermes. Sendo alemães, pensaram e escreveram de forma hieroglífica. Seus tradutores discordam do sentido de muitos termos utilizados, o que mais dificulta a aproximação de suas filosofias. O que resta, é confiar na bibliografia que os trouxe a nós, e admirar com luneta o que só um potente telescópio poderia decifrar.
   


“Não há dúvida de que a transformação da modéstia em virtude foi de grande vantagem para os idiotas...”                   Schopenhauer
“que venha o vento quente do outono para que caiam mais depressa das árvores os frutos apodrecidos”                                             Nietzsche


1. Prólogo

Schopenhauer e Nietzsche são dois picos de montanhas. Surgem no cenário da filosofia a contragosto da Academia. Alemães, solitários, críticos, sarcásticos, altivos e des-construtores da ética normativa. Passam em revista a filosofia de então e soerguem-se contra ela. Mas não andam juntos. Enquanto o primeiro é apresentado como pessimista, o último se mostra para “além do bem e do mal”. O humor de ambos é diferente. O filósofo do Mundo como Vontade e Representação (ou Ideal) se afasta das pessoas, mas o criador da Vontade de Potência (ou Poder) as afasta. Quem se aproxima de Schopenhauer é logo evitado e quem procura Nietzsche logo o evita. Falam e não são ouvidos, escrevem e não são entendidos. “Quando uma cabeça e um livro se chocam – provoca Schopenhauer – e um deles produz um som como se estivesse oco, é sempre o livro?[1]” Nietzsche piora: “Quem conhece o leitor, já nada faz para o leitor. Mais um século de leitores, e o próprio espírito terá mau odor[2]”.

2. Princípio Ético em Schopenhauer


A Europa do século XIX está sendo chamada de volta à piedade cristã. O Século das Luzes gerou Newton, Berkeley, Hume, Vico, Voltaire, Diderot, Montesquieu, Rousseau, Kant, Fichte, Goethe, Schelling e Hegel. Esses ilustrados formaram pelotões de racionalistas, empiristas, idealistas, utilitaristas e românticos. Testemunharam o apogeu do humanismo e seu antropocentrismo, assim como endossaram o absolutismo e o republicanismo. Sofreram com guerras e revoluções, endeusaram a Razão e arruinaram o mundo com seu otimismo iluminista. Não puderam cumprir o que prometeram e entregaram a Schopenhauer um universo destruído o qual...

“... viajando pela França e pela Áustria em 1804, ficou impressionado com o caos e a sujeira das aldeias, a miserável pobreza dos agricultores, a inquietação e miséria das cidades. [...] Seria um brado para que o intelecto penitente se curvasse diante das antiqüíssimas virtudes da fé, esperança e caridade?[3]”.

Schopenhauer não cede aos apelos da religião, contudo, busca nela uma fonte ética para sua Contribuição à Doutrina do Sofrimento Do Mundo. Em suas palavras “nossa receptividade para a dor é quase infinita, aquela para o prazer possui limites estreitos[4]”. O homem estaria naturalmente pronto para o sofrimento e despreparado para o prazer. É justamente este o brado da religião: o sofrimento traz vida, o prazer provoca morte. Não é uma ética estóica, de indiferença pela dor, é uma adequação da physis com o nous, da natureza com o entendimento. O irracionalismo em Schopenhauer se caracteriza pela reorganização das hierarquias epistemológicas. Se antes a Razão ocupava o primeiro posto, agora ela subordina-se a Vontade. “Nós não queremos uma coisa [como o sofrimento] porque encontramos motivos para ela, encontramos motivos para ela por que a queremos[5]”  

3. Quereria o homem sofrer?


            Desde os primórdios a filosofia se embate com a questão da felicidade X sofrimento. Bernadette Siqueira afirma que “para Aristóteles, a causa final do homem, seu objetivo supremo, é a felicidade [a qual] obtém-se por meio da vida contemplativa, uma vida intelectual sossegada, longe das perturbações do cotidiano [6]”. Mas Will Durant interpola a tradição filosófica ao escrever que “quase sem exceção, os filósofos colocaram a essência da mente no pensamento e na consciência [o que para Schopenhauer foi um] “enorme próton pseudos[7]”. Não é no pensamento que reside o problema ético, mas na vontade, ou seja, na physis, não no nous. A physis suporta a dor e o sofrimento com naturalidade, sendo a busca da felicidade uma fuga racional antinatural, daí, o agravamento da questão ética. Se em minha tabela de erros e acertos inverto os valores e tomo o sofrimento como acidental, enquanto valoro a felicidade ao lado do correto, estarei em constante conflito com a natureza das coisas. Observarei o fenômeno (Kant) e abstrairei um “juízo de valor polarizado e antinatural”. Surgirá a dúvida onde haveria certeza, questionamento no lugar da resposta, culpa ao invés de paz. Eu chamaria sofrimento o que não é e buscaria a felicidade sem nunca a encontrar.
“Como nós não sentimos a saúde de todo nosso corpo, mas o pequeno local onde o sapato nos aperta, assim também não pensamos na totalidade de nossos interesses que vai perfeitamente bem, porém em qualquer insignificância que nos aborrece. Nisto se baseia a negatividade do bem-estar e da felicidade, muitas vezes ressaltada por mim e oposição à positividade da dor[8]

A ética de Schopenhauer não é pessimista - é trágica. Não sentimos a felicidade na dor por que antes de vivermos, filosofamos, racionalizamos, apolinariamos o sofrimento, e dentro das linhas apolíneas, o sofrer faz mal e é anti-natural. A razão chama o prazer no sofrimento de masoquismo (se em mim) e de sadismo (quando no outro). Schopenhauer (e Nietzche) quer voltar ao irracionalismo, afirmando que a coisa é natural quando não se constrói o artifício lógico (de Apolo), mas se vive a coisa (como em Dionísio[9]). Schopenhauer é melancólico ante o mundo que herdou não um pessimista. Fala dos azares no sentido que “consideramos as alegrias bem abaixo [e] as dores bem acima de nossa expectativa”.

O problema está na perspectiva que temos das coisas. O bem estar e a felicidade são negativos ao entendimento do mundo, uma vez que põe o homem em estado de euforia e contentamento, maquiando a angústia causada pelo sofrimento[10]. Esta felicidade mundana é uma farsa ante o quadro real de um mundo construído em cima guerras e revoluções. É onde aperta o sapato! A dor se mostra grande ante um sofrimento instantâneo, mas quando prolongada ao longo de uma existência, já não é tão importante. Quando nascemos soltamos um grito alucinante de dor, porquanto o oxigênio dilacera nosso pulmão desacostumado com a dor da respiração. Uma vez acostumados com a dor, já não choramos. A dor ainda existe, mas está em estado de natureza, irracionalizada, vivida no corpo, não na mente.

O sofrimento causa compaixão nos cristãos, e a compaixão incomoda Schopenhauer. Ele quer que os homens sintam suas dores, que sejam incomodados pelo sofrimento e encarem o mundo por si mesmos, sem ajuda externa, de anjos, homens ou Deus, pois a morte está no zênite de todo ser vivente, seja animal ou humano. Enquanto para o animal a morte é nada, para o humano é um infortúnio e deve ser encarada como obstáculo a ser vencido. É a faticidade da morte que permite ao humano transcender sua animalidade, o qual “cresce muito mais [...] a medida da dor do que a do prazer[11]”. Ou, nas palavras de Nietzsche: “Com todo o crescimento do homem em grandeza e elevação, cresce ele também no profundo e terrível[12]”.  

4. Nietzsche, uma releitura de Schopenhauer?


Doutor Mário diz que Nietzsche dormia menos de quatro horas por dia a fim de ler as duas mil páginas do impressionante escrito de Schopenhauer sobre o Mundo como Vontade e Representação[13]. Esta leitura estragou o mundo. Seguindo de perto a metodologia de Kierkgaard - que perdeu o sono lendo Abraão – o jovem prussiano perdeu dois anos com a leitura de Schopenhauer.

“Através da obra nietzcheana ver-se-á sempre uma influência preponderante das idéias de Schopenhauer, inclusive nos pontos em que se rebela contra toda interpretação pessimista. Embora refutando Schopenhauer, Nietzche nunca se liberta do veneno sutil que ele goteja em sua alma[14]

Schopenhauer estragou Nietzsche, e Nietzsche, fez o resto. Se a proposta do Mundo como Vontade e Idéia era um retorno ao trágico da vida e ao irracionalismo de Dionísio, a proposta do que Falou Zaratustra na Vontade de Potência do Anticristo para Além do Bem e do Mal        era uma concepção da ética pelo prisma do Humano, Demasiadamente Humano. O conjunto das obras nietzcheanas espeta a moral das coisas, não lhes permitindo permanecer em estado de Lótus. Foi uma vingança do pequeno órfão contra o Deus que lhe provocou. Uma imitação do Ulisses prussiano contra o Poseidon cristão, e “a maior parte de sua obra foi escrita de modo aforismático [...] por isso, não haja nada mais difícil [...] do que apreender o que seria o seu projeto[15]”.

O projeto nietzcheano é um continuísmo do schopenhauriano: desconstruir a ética formalizada em torno do “tu deves” e reconstruí-la a partir do “tu queres”. Se a questão ética gravitara do nous à physis e oferecera outro eixo para o problema do bem e do mal, Nietzsche não tornaria atrás. Ele provocará a moral até emancipá-la ao “eu sou”.

“Compreenda-se: nossa civilização passou primeiro pelo domínio do ‘tu deves’, quer dizer, pelo primado da moral e da religião; esta primeira etapa do espírito cede lugar ao domínio do ‘eu quero’, que designa o eclipse do mundo do dever e a liberação da vontade; enfim, o ‘eu quero’ supera-se no ‘eu sou’, uma nova relação do indivíduo com sua existência. Para apreender do interior estes períodos, vale apena situar-se na etapa intermediária – do domínio do eu quero[16]”.

5. Princípio Ético em Nietzsche


Subi aos vossos navios! O que necessitamos é de uma nova Justiça! E de uma nova libertação. E de novos filósofos! A terra moral é redonda, também. E a terra moral possui seus antípodas. E os antípodas também têm seu direito à existência. Há um mundo novo ainda por descobrir e até mais de um! Aos vossos navios, todos a bordo, filósofos![17]”                                     Nietzsche,“Gaya Scientia”

Em Gaya Scientia o princípio ético é figurado pelo mar desconhecido. O novo - a que se refere - lembra a voz de Ulisses contra os deuses gregos. Assim como a conquista de Tróia se atribui ao gênio do humano, a nova ética seria uma conquista dos novos justos, dos novos filósofos. Para tanto, é preciso navegar no mar do Poseidon cristão, enfrentá-lo e vencê-lo. A forma como a convocação ao embarque lembra os discursos napoleônicos é insigne: “Soldados! Sois uma das asas do exército da Inglaterra. Fizésseis a guerra nas montanhas, nas planícies e nos rios; resta-nos somente a guerra marítima[18]”. Nietzsche é Napoleão, e sua revolução contra a ética e a moral judaico-cristã é do mesmo quilate que a revolução contra os mamelucos de Alexandria:

Dir-vos-ão que venho para destruir a vossa religião, mas não acrediteis. Respondei que vim para restabelecer vossos direitos e para castigar vossos usurpadores, e que eu respeito, mais que aos mamelucos, a Deus, a seu profeta e ao Alcorão[19]”.                             Napoleão 
 
A refutação de Deus... Realmente o Deus moral é que está refutado”.                                          Nietzsche

          A questão ética é uma questão moral em Nietzsche. A moral dos judeus e cristãos católico/protestantes, baseada na Bíblia e na tradição da Igreja. É a moral de um Deus morto, que não corresponde com a vida humana conforme vivida nos estratos da sociedade comum. Serve de máscara e justificativa para a mediocridade e indigência humana. Esta moral prende a humanidade a um desnível existencial em relação as suas potencialidades, e tal prisão precisa ser aberta. O problema é que os religiosos detêm as chaves da cadeia, e não encontram rival que os vença e liberte os encarcerados, até que surge Zaratustra.

“Aquele que tiver que ser um criador para o bem e para o mal – na verdade, terá primeiro que ser um destruidor e fazer os valores em pedaços. Assim, o mal maior será parte do bem maior. Mas isto é um bem criativo. Falemos sobre isso, ó homens mais sábios,  por pior que seja. Ficar calado é pior; todas as verdades não expressas tornam-se venenosas. E seja lá o que for que aconteça à nossa verdade, que aconteça! Ainda há muita casa para ser construída[20]”.          
                        
Zaratustra é o super-homem de Nietzsche, o que liberta a humanidade para um mundo de pluralidades, diversidades, ineditismos e aberturas para o irracional. Neste mundo o dualismo das coisas é equivalente, ou seja, bem e mal são pesos iguais, não antagônicos, não complementares e não relativos. O sujeito e o objeto se relacionam trocando de papeis, experimentando o outro, perdendo-se para encontrar-se, e encontrando-se, perdendo. A verdade aceita o acontecimento como fator de transmutação e se sujeita a uma reconstrução de si assumindo a forma de contradição - de verdades. O subjetivismo não faz cara feia para o objetivismo, pelo contrário, o abraça e beija, o aceita como parte de si e abre um sorriso. Neste mundo, os deuses riem até morrer.

6. Conclusão


A questão ética em Schopenhauer e Nietzsche traz um novo corpo para a filosofia. Todo processo de retorno as origens iniciado no Renascimento permanece em ebulição ao longo dos séculos. As origens - para esses dois irracionalistas - remontam aos tempos da tragédia grega, tempo em que a vida era uma guerra, e a guerra era natural ao homem, assim como a morte, a dor e o sofrimento. Nem por isso a vida era ruim. O homem da antiguidade celebrava cada dia de sua vida, e o único lastro de eternidade era sua memória preservada nos cantos dos aedos. Com o advento da moral judaico-cristã, a vida deixou de ser celebrada e a morte passou a apavorar os homens. O inferno que igualava bons e maus passou a atormentar os não cristãos e o viver cedeu lugar ao saber. A ciência ganhou status libertador e a vida ganhou o peso da culpa. 

Schopenhauer e Nietzsche celebram a vida sem culpa ou medo da morte, um de forma melancólica, o outro, cantando mofas. O certo e o errado não são valores prontos e exatos, são conseqüências de escolhas voluntárias, soltas no mundo, longe dos crivos da razão e do saber. São idéias, representações, vontades e potencialidades. Nada definido.

7. Bibliografia


ABRÃO, Bernadete Siqueira. História da Filosofia. Ed. Nova Cultural. São Paulo. 1999
SANTOS, Mario Ferreira dos. Antologia da Literatura Mundial, Famosos Discurso Estrangeiros.
DURANT, Will. A História da Filosofia. Ed. Nova Cultural, Rio de Janeiro, 1996
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência, Ed, Escala, São Paulo
PONTE, Carlos Roger Sales de Revista Discutindo Filosofia, ano2 – nº 10
SANTOS, Mario Ferreira dos. Antologia do Pensamento Mundial. Ed. Logos, São Paulo
SCHOPENHAUER, Artur. O Mundo como Vontade e Representação, III Parte. Ed. Nova Cultural


[1] Citado por WILL Durant in A História da Filosofia. Ed. Nova Cultural, Rio de Janeiro, 1996, p.290 
[2] Citado por Mário Ferreira dos Santos in Antologia do Pensamento Mundial. Ed. Logos, São Paulo, p.76
[3] DURANT, Will. A História da Filosofia. Ed. Nova Cultural, Rio de Janeiro, 1996, p.296 
[4] SCHOPENHAUER, Artur. O Mundo como Vontade e Representação, III Parte. Ed. Nova Cultural, São Paulo, 1999, p. 277
[5] DURANT, Will. Op. cit, p. 295
[6] ABRÃO, Bernadete Siqueira. História da Filosofia. Ed. Nova Cultural. São Paulo. 1999, p.63
[7] DURANT, Will. Op. cit, p. 295
[8] SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit., p. 277
[9] [O dionisismo] caracteriza-se por ser trágico, pois vê a existência como prazerosa, alegre, mesmo em meio ao sofrer mais duro, absurdo estranho e questionável que esta mesma vida comporta. Sem fugir do sofrimento, o homem dionisíaco afirma a vida indestrutível e jubilosa”. (Revista Discutindo Filosofia, ano2 – nº 10)
[10] Mais tarde, Heidegger denunciará este estado de “existência inautêntica”, afirmando que a humanidade está em fuga da faticidade da morte.         
[11] SCHOPENHAUER, Artur. Op. cit., p. 281
[12] Citado por Carlos Roger Sales de Ponte no artigo Isso é Esparta, (Revista Discutindo Filosofia, ano2 – nº 10, p.11
[13] Prefácio de Mário Ferreira dos Santos a Vontade de Potência. Ed. Escala, São Paulo, p.17
[14] idem
[15] ABRÃO, Bernadete Siqueira. História da Filosofia. Ed. Nova Cultural. São Paulo. 1999, p.413
[16] idem, p.415
[17] Citado por Mário Ferreira dos Santos in Vontade de Potência, Ed, Escala, São Paulo, p.11
[18] In Antologia da Literatura Mundial, Famosos Discurso Estrangeiros, Ed. Logos, 10ª Ed, São Paulo, 1965. p. 221
[19] Idem, p. 223
[20] DURANT, Will. A História da Filosofia. Ed. Nova Cultural, Rio de Janeiro, 1996, p.296  

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Fórum I de Lógica II - Conceito de validade e verdade


Caro professor e queridos colegas,

Vou abrir minha participação nesse fórum com um trecho de Nietzsche, em O Livro do Filósofo:

“Todos os instintos ligados ao prazer e ao desprazer – não pode aí haver um instinto de verdade, isto é, de uma verdade completamente sem conseqüências, pura, sem emoção; porque aí cessaria prazer e desprazer e não há instinto que não pressinta uma alegria em sua satisfação. A alegria de pensar não demonstra um desejo de verdade. A alegria de todas as percepções sensíveis consiste no fato de terem sido conseguidos por meio de raciocínios. O homem nada sempre até esse ponto num oceano de alegria. Em que medida, contudo, o silogismo, a operação lógica preparam a alegria?”
(Fragmento 181, do livro O Livro do Filósofo, página 97. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, Editora Escala).

Este livro é, na verdade, um apanhado de pensamentos soltos, incompletos. Nietzsche morreu sem dar cabo de sua conclusão e eu o considero quase como um diário, um apanhado de pensamentos que o alemão poderia um dia desenvolver – não fosse a sífilis. Por isso, o filósofo não conclui o raciocínio e deixa a pergunta sem resposta: como as operações lógicas poderiam nos preparar para a alegria do pensamento, se a alegria do pensamento, de acordo com ele, não consiste no desejo de verdade?

Para pensarmos a questão, devemos nos ater às condições de validade e verdade aplicadas à Lógica: a validade de um argumento depende exclusivamente da relação entre as suas premissas e a conclusão delas derivada. Assim, a validade de um argumento deve ser considerada de acordo com sua estrutura e não de acordo com o conteúdo do discurso anunciado.

Temos, no entanto, dois tipos de argumentos: os dedutivos e os indutivos. Nos argumentos dedutivos, a conclusão é amparada de forma definitiva pelas premissas, havendo, portanto, uma necessidade lógica nessa relação. Assim, um argumento dedutivo em que as premissas não sustentam a conclusão, é um argumento inválido.

Contudo, temos também os argumentos indutivos, onde a conclusão é afirmada pelas premissas somente dentro de um campo de possibilidade, não atestando definitivamente sua conclusão. Logo, quando falamos em validade dos argumentos, só podemos nos referir aos argumentos dedutivos, sendo certo que os indutivos podem ser considerados apenas com probabilidades, maiores ou menores de validade, em relação às conclusões e suas premissas.

Com isso, podemos afirmar que quando as premissas são verdadeiras, é impossível que sua conclusão seja falsa. No entanto (Filosofia sempre tem esse “no entanto” que termina complicado as coisas), é possível que as premissas sejam falsas, dentro de uma estrutura válida, mas com uma conclusão verdadeira. Parece complicado. E é! (pelo menos para mim). Para tentar entender como isso ocorre, vou recorrer à citação de um site sobre Lógica, onde o autor se apresenta apenas como Vinícius:

é possível termos premissas falsas e conclusão verdadeira em um argumento válido. Isso mostra porque ao tentar rebater um argumento devemos primeiramente verificar as premissas e não a conclusão. Para evitar a confusão,  devemos deixar claro: em um argumento válido, se as premissas são verdadeiras a conclusão não pode ser falsa; por outro lado, se as premissas forem falsas, a conclusão pode ser verdadeira ou falsa! A única garantia que a validade nos dá é no caso de premissas verdadeiras. De premissas falsas pode-se concluir qualquer coisa, não há controle, digamos assim.”

Ou seja, o conceito de verdade pode ser aplicado coloquialmente, mas não em relação à conclusão dos argumentos. Para análise do raciocínio e seus argumentos, poderemos considerá-los, de acordo com sua estrutura, apenas como válidos ou não válidos. A sua verdade, no entanto, dependerá da concordância da afirmação da proposição em comparação com a realidade ou do posicionamento  moral – análises essas, que não compete ao estudo de validade da Lógica.

Então se não podemos considerar os argumentos como verdadeiros, mas tão somente válidos ou inválidos, como validar o argumento? Simples: de acordo com a estrutura desenvolvida no raciocínio. Para que consideremos qualquer argumento válido, basta que enxerguemos, oculta nas premissas, a conclusão ao qual se pretende chegar. Por exemplo:

Todos os gatos bebem leite
Mingau é um gato
Logo, ...

Este argumento é válido. Mas por que é válido? Afirmamos que é válido porque a conclusão é aparente já nas premissas. É lógico que Mingau bebe leite, isso fica evidenciado já nas premissas. E essa é a regra para um raciocínio válido: a conclusão é inteiramente amparada pelas premissas – que a sustenta e valida.

Mas como disse acima, há ainda os argumentos que são válidos apesar da conclusão falsa:

Todos os gatos bebem leite
As baleias bebem leite
Logo, os gatos são baleias.

Neste caso, a conclusão é falsa (sabemos claramente que um gato não é uma baleia) mas é um argumento válido – embora não seja um raciocínio verdadeiro. Assim, é certo afirmar que só sabemos que o argumento não é verdadeiro, pois conhecemos a natureza dos mamíferos e embora gato e baleia bebam leite, sabemos, pelo contato com a realidade, que trata-se de animais diferentes. Contudo, é válido o argumento: a conclusão é amparada pelas premissas e se não conhecêssemos gatos e baleias, poderíamos ser levados a acreditar que o argumento, além de válido, poderia ser verdadeiro. No “logiquês”: nem todos os argumentos com forma válida têm premissas e conclusão verdadeiras, ao passo que todos os argumentos que têm premissas e conclusão verdadeiras têm forma válida.


E eis o perigo da Lógica: sermos conduzidos a acreditar em conclusões falsas, apesar das premissas verdadeiras. Ou seja, um indivíduo pode ser levado a crer em determinada idéia apenas em razão de sua estrutura lógica. Em outras palavras: podemos enganar uma pessoa com uma conclusão que não é verdadeira, utilizando para isso de premissas válidas. Me parece ser o caso do exemplo de argumento social do anexo:

A primeira questão é o argumento dos defensores do aborto. De acordo com eles (e conforme “tradução” do professor):

As mulheres pobres e ricas fazem aborto mesmo que este seja ilegal.
As mulheres pobres fazem aborto em piores condições que as mulheres ricas.
Portanto, o aborto deve ser legalizado, pois desse modo todas farão aborto nas mesmas condições.”

Partindo dessa idéia, o argumento não apenas é válido, como também verdadeiro. É válido pois as premissas dão suporte à conclusão, e é verdadeiro a partir da MINHA concepção de mundo (podendo ser um argumento não verdadeiro para outro colega que condene moralmente o aborto). Assim, embora concordemos ou não com a sua verdade, todos devemos considerar válido o argumento.

No entanto, o autor do texto faz uma analogia desse argumento com a questão da pedofilia:

“Os pedófilos praticam a pedofilia mesmo que esta seja ilegal.
Os pedófilos pobres praticam a pedofilia em piores condições que os pedófilos ricos.
Portanto, devemos legalizar a pedofilia para que pedófilos ricos e pobres a pratiquem nas mesmas condições.”

Mais uma vez o argumento é válido: as premissas sustentam a conclusão. No entanto, para mim, a conclusão é falsa. E é falsa porque discordo moralmente da pedofilia, fui criada em uma cultura que acredita que somente por volta dezesseis, dezessete anos, a pessoa tem condições físicas e psicológicas para desenvolver-se sexualmente. Contudo, se eu tivesse sido criada em uma cultura (como as de antigamente) onde meninas de onze anos era aliciadas por seus pais e dadas em casamento a promissores senhores, então talvez o argumento, além de logicamente válido, fosse para mim moralmente verdadeiro.

Ou seja, podemos analisar a validade dos argumentos a partir da estrutura, bem como pensar a verdade a partir do enunciado das proposições. Mas nunca podemos nos confundir procurando a verdade do argumento ou a validade das proposições. Em outras palavras: a validade é característica do raciocínio, do argumento, enquanto a verdade é característica das proposições (ou premissas) que o compõem.

De acordo com o filósofo Álvaro Nunes:

“Uma outra confusão comum consiste em pensar que os argumentos são verdadeiros. Os argumentos não são verdadeiros nem podem sê-lo. Tudo o que podemos dizer é que a conclusão de um argumento é verdadeira ou falsa. Isto resulta do facto de a conclusão de um argumento ser uma proposição e, como todas as proposições, poder ser verdadeira ou falsa. A verdade e a falsidade são propriedades das proposições ― é mesmo esta propriedade que as distingue do significado de outras frases como as perguntas ou as exclamações ―, mas os argumentos não são proposições. São conjuntos de proposições relacionadas de modo tal que aquelas que têm a função de premissas, implicam ou são julgadas a implicar a conclusão. Isto significa que a relação entre as diferentes proposições de um argumento determinam se ele tem forma válida ou inválida, mas não que seja verdadeiro ou falso, uma vez que, como já dissemos, essa é uma propriedade das proposições e não dos argumentos.”

Com isso, entendo que o argumento social apresentado é válido, embora a verdade de sua conclusão só possa ser atestada num sentido individual, não regido pelos métodos propostos por Aristóteles para distinguir um raciocínio correto do incorreto. Logicamente falando, o argumento é válido. No argumento do aborto, para mim (a interlocutora com o texto), é válido é verdadeiro. No argumento da pedofilia, também partindo do meu ponto de vista, é válido e de conclusão falsa. Ou seja: podemos atestar universalmente a validade de um argumento, mas nunca sua verdade.

Para finalizar, retomo à pergunta deixada por Nietzsche: como a operação lógica pode nos preparar para a alegria do pensamento? Arrisco aqui a dizer que a lógica pode preparar o terreno para a aventura que é saber, de antemão, que a verdade não pode ser atestada enquanto forma, estrutura. Se a verdade depende do interlocutor do argumento e se não pode ser estabelecida uma regra estrutural para a sua descoberta, cabe aos indivíduos analisarem os raciocínios e estabelecerem uma relação entre o conhecimento e a linguagem. Atestar a verdade, tanto para Nietzsche quanto para a Lógica, é tarefa que não lhes cabe. Assim começa a alegria do pensamento.

Abraços,

Natachy






quinta-feira, 26 de abril de 2012

Fórum I: Teoria do Conhecimento


A verdade muda. E aqui não se trata de um enunciado sofista, desculpa do relativismo. Trata-se de constatação histórica. Nunca existiu, nem existirá, uma verdade eterna. As pessoas vão mudando e, com elas, seus conceitos sobre o que seja verdade também vão sendo alterados. O mesmo ocorre no efeito coletivo dessas pessoas em sociedade: vão mudando seus paradigmas, reformulando seus pré-conceitos e definindo a todo instante a realidade que as cercam. Tudo de acordo com as suas necessidades, impulso ou desejos. Isso é que se chama de conhecimento.

            O conhecimento é o resultado da apreensão de uma realidade. E a realidade, como afirmação, é sempre verdadeira. Mas instável. Para que continue real, a verdade precisa mudar sempre, ou deixa de ser verdade. Por isso, muda para continuar a existir. Qualquer parâmetro tido hoje como verdadeiro, ou nem sempre foi ou não continuará sendo. “Tudo passa, tudo sempre passará”.

            Mas se a idéia de verdade muda, como saber se o que se apreendeu da realidade é verdadeiro? Como garantir a veracidade de um conhecimento? Depende. Depende de qual verdade estamos falando. Sobre a verdade:

“Distinguiu-se, por vezes, entre as seguintes concepções da verdade: (1) verdade metafísica (ou ontologógica); (2) verdade lógica (ou semântica); (3) verdade epistemológica; (4) verdade nominal (ou oracional), veritas sermonis. (1) equivale à verdade das coisas, ou à realidade como verdade; (2) expressa a correpondência, ou adequação, do enunciado à coisa ou à realidade; (3) refere-se à verdade na medida em que é concebida por um intelecto e formulada, num juízo, por um sujeito cognoscente; (4) é a verdade como conformidade entre signos. ”  (MORA, 2001, p. 701).

Como aqui o que nos interessa é a possibilidade do  conhecimento sobre um conhecimento, vamos pensar o exemplo citado de Aristóteles pela  via da epistemologia:

O homem, em sua condição de ser racional que pensa, especula, indaga, emite juízo e conclui, é epistemologicamente o sujeito por excelência da relação estabelecida com o objeto Deus. É ele quem sai em busca do conhecimento, o que promove um deslocamento cognitivo para a apreensão da realidade pensada. Com isso, o homem se apresenta como sujeito e invade, por necessidade, desejo ou impulso, a esfera de Deus, num processo de captação e interiorização das propriedades divinas adquiridas durante a invasão. Em seguida, a partir dos elementos apreendidos do contato com este objeto, o homem cria a imagem mental de Deus. E essa imagem é construída à sua imagem e semelhança, intuitivamente. Logo, pode-se afirmar que Deus, enquanto objeto, apenas existe quando indagado pelo sujeito homem. Da mesma maneira, o sujeito homem só existe quando em relação com algum objeto. Neste caso, Deus. Daí surge o conhecimento.

Concluído o processo de invasão do homem ao objeto, a partir da captação das propriedades de Deus e de sua conseqüente interiorização, o homem poderá afirmar a veracidade de Deus, pois se tornará o sujeito dessa relação que gerou conhecimento, permitindo a existência de Deus mediante a representação para ele criada. Não fosse o desejo do homem de conhecer a Deus, Deus não existiria.  Mas há o desejo, a imagem mental construída coletivamente,  o que permite afirmar que sim, Deus existe e pode ser conhecido, apreendido. Portanto, há veracidade na afirmação de Aristóteles. Epistemologicamente, Aristóteles parece estar correto.

Veja que não se trata aqui de uma discussão teológica sobre os termos Deus e Homem, tampouco de qualquer desvio de foco para questões religiosas. Trata-se, ao contrário, de uma especulação estritamente epistemológica, procurando utilizar as teorias expostas nas apostilas, em analogia à questão filosófica proposta por Aristóteles no exercício.

Concluindo, podemos afirmar que a veracidade é, em linhas gerais, o produto do processo do conhecimento. Parece-nos claro que o conhecimento adquirido, construído, é sempre verdadeiro, ao menos para quem o construiu. No entanto, a questão aponta para outro lado: como se conhece? Será que o que se conhece é a mesma coisa que o outro julga conhecer? As imagens mentais, sobretudo as quais não se têm acesso à realidade senão pelo estabelecimento de um acordo imaginário (Deus, felicidade, saudade) seguem a determinados padrões?

Não sei. Para responder a isso, precisaríamos estudar sobre a hierarquia na relação entre sujeito e objeto; pensar a possibilidade de conhecimento intuitivo e empírico, coletivo e individual, linguagem, razão etc. Ainda não chegamos lá. Mas penso que este seja o valor da Teoria do Conhecimento: estimular perguntas para respostas que sabemos nunca definitivas, nunca completas. O conhecimento sobre o conhecimento se expande na mesma medida em que conhecemos mais. E continuamos a conhecer, a aprender, a formular proposições, sempre.

Como sabemos que sabemos? Sabemos? É possível que saibamos? Se sim, ao que se sabe? O que se supõe saber é verídico, real? Não sei. Me parece que sim. Mas será possível haver tantas verdades dispares entre os sujeitos tomadores de uma mesma realidade? Ou serão realidades distintas? Também não sei. São muitas perguntas, talvez infinitas. Por isso penso que agora, o mais importante,  seja começar a duvidar das certezas. É assim que a filosofia se expressa. É assim que o conhecimento se teoriza.

REFERÊNCIAS:
Material de apoio CEUCLAR.
MORA, J. F. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 733 p.

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TCD Filosofia Moderna: As inovações que o conceito de Virtú, de Maquiavel, traz para as esferas Política e Ética - Análise do artigo de Maria Tereza Sadek.


Introdução


Demais, os Estados rapidamente surgidos, como todas as outras coisas da natureza que nascem e crescem depressa, não podem ter raízes e as aderências necessárias para a sua consolidação. Extingui-los-á a primeira borrasca, a menos que, como se disse acima, os seus fundadores sejam tão virtuosos [virtuosi], que saibam imediatamente preparar-se para conservar o que a fortuna lhes concedeu e lancem depois alicerces idênticos aos que os demais príncipes construíram antes de tal se tornarem.”
                                                                       Nicolau Maquiavel[1]
           
Maquiavel nasceu em Florença, na Itália, em 1469. Por volta de 1498 tornou-se secretário da Segunda Chancelaria, onde por mais de quatorze anos viajou entre diversas cidades em missões diplomáticas. Contudo, com o retorno dos Médici ao poder em 1512, Maquiavel foi exonerado do cargo e um ano depois preso, torturado e multado sob a acusação de tramar contra o governo.

Neste período, a Itália era uma nação fragmentada em diversos Estados que formavam um território em constante conflito, muito deles derivados pela incompetência política de seus governantes. Com o desejo de retornar à vida pública e incentivado pela desestabilização da região cujas fronteiras de seus Estados viviam em perigo de guerra eminente, Maquiavel escreveu um livro de instruções ao príncipe Lorenzo, chefe da família Médici e sucessor do príncipe Juliano. Em O Príncipe, livro de gênero muito popular na época, Maquiavel aconselha de forma prática sobre como Lorenzo deveria agir para tornar-se um conquistador e com isso, conseguir unificar a Itália sob seu domínio soberano.

Nesta obra, o príncipe é descrito como alguém capaz de conquistar territórios, exercer soberania e manter o poder político. Para isso, ele não poderia ficar restrito à moralidade vigente e aos costumes da época. Maquiavel via a humanidade de maneira pessimista, fria e cruel, entendendo os homens como essencialmente ruins, mentirosos e trapaceiros. Por este motivo, não caberia ao príncipe ser diferente dos homens a quem governava, sendo a ele concedida a premissa de mentir, ser corrupto e não precisar manter a palavra dada, se disso dependesse a manutenção de seu poder. Para Maquiavel, os fins justificavam os meios e não havia, para este pensador, fim maior que a unificação da frágil Itália, na época tão chafurdada em um ambiente de caos e instabilidade.

Sobre o Conceito de Virtú e Fortuna
         Dois grandes conceitos permeiam a obra O Príncipe: Virtú e Fortuna. Para ampará-los, Maquiavel recorre à mitologia clássica em oposição ao cristianismo que começava a ser discutido na Itália Renascentista.

            Com o cristianismo, o conceito sobre a fortuna tornou-se pejorativo, símbolo de busca indiscriminada e vã pelo poder. Para os cristãos, a fortuna deixava de ser fonte de felicidade, já que por seus preceitos, ao homem era dada a verdadeira felicidade somente no além-mundo, de acordo com a moralidade exercida pelos indivíduos na vida terrena. Sobre a maneira como os cristãos do período compreendiam o conceito de fortuna, nos diz Maria Tereza Sadek:

Esta visão foi inteiramente derrotada com o triunfo do cristianismo. A boa deusa, disposta a ser seduzida, foi substituída por um “poder cego”, inabalável, fechado a qualquer influência, que distribui seus bens de forma indiscriminada. A Fortuna não tem mais como símbolo a cornuscópia, mas a roda do tempo, que gira indefinidamente sem que se possa descobrir o seu movimento. Nessa visão, os bens valorizados no período clássico nada são. O poder, a honra, a riqueza ou a glória não significam felicidade. Esta não se realiza no mundo terreno. O destino é uma força da providência divina e o homem sua vítima impotente.
Maria Tereza Sadek[2]
           
Maquiavel então subverte esta concepção cristã sobre a fortuna, dotando-a de características clássicas, que consideravam a fortuna uma deusa que “possuía o bens que todos os homens desejavam: a honra, a riqueza, a glória, o poder” (SADEK). Mas se por um lado a Fortuna era a responsável por oferecer tantos favores ao príncipe, Maquiavel afirma ser a virtú a responsável por atrair tais favores e mantê-lo no poder. Assim, um homem dotado de virtú seria capaz de seduzir a sorte, onde “a liberdade do homem é capaz de amortecer o suposto poder incontrastável da Fortuna” (SADEK).

Desta maneira, na obra de Maquiavel a Fortuna é considerada um instrumento de sorte, que poderia ou não agraciar ao príncipe, de acordo com a virtú representada na sua coragem e força em seduzi-la. No entanto, mais uma vez Maquiavel subverte o conceito que era comum sobre a virtude. Na abordagem deste pensador, a virtú se aproxima mais da concepção medieval de qualidade e habilidade pessoais, do que na virtude religiosa.

Para Maquiavel, a virtú é a destreza do governante em obter o sucesso pelos favores da fortuna, alcançando com isso a glória e a manutenção do poder, sem que este conceito seja relacionado à virtude religiosa que estabelecia a bondade como âncora. Ao contrário, para Maquiavel, a virtú era a astúcia política, o segredo da excelência e sucesso do príncipe:

Assim, a qualidade exigida do príncipe que deseja se manter no poder é sobretudo a sabedoria de agir conforme as circunstâncias. Devendo, contudo, aparentar possuir as qualidades valorizadas pelos governados. O jogo entre a aparência e a essência sobrepõem-se à distinção tradicional entre virtudes e vícios. A virtú pública exige também os vícios, assim como exige o reenquadramento da força. O agir virtuoso é um agir como homem e como animal. Resulta de uma astuciosa combinação da virilidade e da natureza animal.
                                                        Maria Tereza Sadek[3]

            Com isso, Maquiavel em um único livro altera toda a concepção de virtú e fortuna, tão comuns e incentivados na época. A fortuna deixa de ser uma conquista egoísta, para tornar-se instrumento de sorte. A virtú deixa de ser sinônimo de bondade para tornar-se astúcia e destreza pessoal, sendo que somente com a junção de virtú e fortuna, um príncipe seria capaz de manter-se no poder conquistado, podendo incorrer em defeitos se isso fosse necessário para a manutenção de sua soberania, devendo, para tanto, ser guiado pela necessidade e não pela moralidade vigente.

Inovações do conceito de virtú para a política e a ética
        O Livro O Príncipe é considerado um dos maiores instrumentos da filosofia política da História. Por tratar da política como ela se desenvolve de fato e não como poderia desenvolver-se utopicamente, Maquiavel disseca a psicologia das relações de poder e estabelece uma rigorosa segregação entre política e religião.

            Ao contrário do que era estabelecido, Maquiavel considera que o poder não depende apenas do destino, mas, sobretudo, da astúcia de governante em manter-se sob o comando de uma nação que o respeitasse, temesse e, sendo possível, o amasse. Tal astúcia representa uma inovação no pensamento político, outorgando ao homem a responsabilidade por seu sucesso, através da junção das forças intelectuais e animais presentes em cada indivíduo. Assim, ao príncipe não bastaria a força de um leão para o domínio de um território, mas, sobretudo, a astúcia de uma raposa para manter-se no controle, sabendo como agir, quando mentir e o que deveria aparentar aos seus governados.

            Desta maneira, Maquiavel inova ao propor que a política possui uma ética própria, e não mais a mesma pregada pela religião. Ele subverte os conceitos já mistificados de virtude, fortuna e poder, e lança sobre eles um olhar crítico e prático, baseado em observações concretas e desprovidas de fundamentalismos dogmáticos. Assim, não seria necessário ao príncipe ser um homem bom, devoto, cumpridor de suas promessas ao povo, pois tais características são próprias da virtude cristã, apartada da ética política instruída por Maquiavel. Bastaria, portanto, que o príncipe se guiasse pelas necessidades advindas de determinadas circunstâncias, tendo a astúcia exigida para saber identificá-las e a sabedoria para agir em razão delas.

            Outra inovação de Maquiavel foi a de atestar à fortuna apenas metade do sucesso de um príncipe, sendo a virtú a responsável pela metade que o manteria no poder. Com isso, Maquiavel dilui a crença no sucesso como predestinação e passa a encará-lo como um esforço árduo e constante do homem que se dispõe a governar uma nação, caracterizando o pensamento renascentista de outorgar ao homem e não aos poderes do destino, o seu estabelecimento enquanto tal.

            Com essas inovações, Maquiavel não apenas consagrou-se como um dos maiores expoentes do pensamento renascentista, como se tornou também um dos maiores filósofos políticos da História, contribuindo para a análise de como a política funciona de fato, e não como gostaríamos que ela funcionasse.

Conclusão: Os fins justificam os meios
         É célebre a frase de Maquiavel que afirma que os fins justificam os meios. Tal afirmação é a responsável pelo tom pejorativo com que o pensador é citado cotidianamente, até por quem nunca teve acesso à sua obra. Assim, “maquiavélico” tornou-se ao longo da história sinônimo de maldade, característica de pessoa traiçoeira, de quem vive a tramar planos contra outrem.

            No entanto, Maquiavel apenas alterou o prisma pelo qual a moralidade era encarada, separando radicalmente a política da religião.   Para ele, o fim maior era a unificação da Itália, o que justificaria quaisquer meios utilizados pelo príncipe para alcançá-lo. Além disso, por considerar a humanidade essencialmente pérfida, Maquiavel entendia que ao príncipe caberia também sê-lo, se esta atitude acarretasse na ordem e na instauração de um Estado estável. Ao contrário de pensadores que ao longo da História descreveram como a política deveria ser realizada para o alcance de um Estado forte e provedor de bem-estar aos seus governados, Maquiavel antecede uma característica do Renascimento e parte para o plano concreto da política, descrevendo como se dão as relações de poder e não como poderiam dar-se utopicamente. Assim, a partir de um exame metódico da realidade e da história de governos passados, Maquiavel conclui que caberia ao Príncipe construir um Estado que resolvesse o ciclo inevitável de caos e instabilidade, onde os fins justificariam os meios utilizados, tornando-se o príncipe não um ditador, mas o fundador de um Estado unificado, sendo ele o agenciador da transição de uma nação em constante conflito:

O príncipe não é um ditador; é, mais propriamente, um fundador do Estado, um agente da transição numa fase em que a nação se acha ameaçada de decomposição. Quando, ao contrário, a sociedade já encontrou formas de equilíbrio, o poder político cumpriu sua função regeneradora e “educadora”, ela está preparada para a República. Neste regime, que por vezes o pensador florentino chama de liberdade, o povo é virtuoso, as instituições são estáveis e contemplam a dinâmica das relações sociais. Os conflitos são fontes de vigor, sinal de uma cidadania ativa, e portanto são desejáveis.
                                                                    Maria Tereza Sadek[4]

         É importante ressaltar, por isso, que os conselhos de Maquiavel são voltados a um plano político que prevê o Principado como fonte de poder, tendo ainda, a República como alternativa política. No entanto, para este pensador, a nação só estaria plenamente preparada para este modelo de governo, quando um homem forte conseguisse unificar os diversos territórios em conflito e tivesse cumprido seu papel de regenerador da sociedade.

            Por fim, há correntes dentro da Filosofia que afirmam ser O Príncipe um livro satírico, que fizesse com que os governados constatassem a natureza dos príncipes e rejeitassem tal domínio. Por outro lado, há os que afirmam que sua obra tinha o intuito apenas de agraciar a família Médici, como forma de retornar ao cargo público ao qual havia sido exonerado. Com isso, é um desafio discernir na obra de Maquiavel quais eram suas reais crenças e quais seriam apenas o modelo utilizado para satirizar ou agraciar os governantes. Contudo, independentemente das correntes que estudam e defendam tais concepções, O Príncipe é, de toda forma, um livro intrigante, feito de instrumento político por ditadores e republicanos, e obra indispensável aos interessados na descrição analítica dos mecanismos do poder.

Fonte de Pesquisa







[1] MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Disponível em: http://www.ceap.br/artigos/ART13102011193159.pdf.

[2] SADEK, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtú. Disponível em: http://www.ceap.br/artigos/ART13102011193159.pdf.

[3] SADEK, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtú. Disponível em: http://www.ceap.br/artigos/ART13102011193159.pdf.

[4] SADEK, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtú. Disponível em: http://www.ceap.br/artigos/ART13102011193159.pdf.