segunda-feira, 14 de maio de 2012

TCD Ética II - Hegel e Nietzsche


1. Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar as éticas hegeliana e nietzschiana, sob o prisma do livro A Genealogia da Moral, de Friedrich Nietzsche. Para tanto, faz-se necessário ao menos um resumo das principais idéias propostas pelo filósofo alemão, autor na referida obra. Como o próprio Nietzsche realizou este apanhado em seu livro Ecce Homo, optamos aqui por transcrevê-lo:

As três dissertações que compõem essa genealogia são, talvez, no que diz respeito à expressão, intenção e arte de surpreender, a coisa mais sinistra que já foi escrita até hoje. Dionísio é, a gente o sabe, também o deus das trevas...A cada vez, um princípio calculado para desorientar, frio, científico, até mesmo irônico, intencionalmente em primeiro plano, intencionalmente demorado. Aos poucos, mais intranqüilidade; raios esparsos; verdades assaz desagradáveis vindas da distância e cada vez mais altas em seu ribombar surdo – até que enfim se alcançou um tempo feroce, onde tudo impulsiona adiante com uma tensão colossal. No final de cada vez, sob detonações totalmente assustadoras, uma nova verdade se torna visível entre as nuvens pesadas...A verdade da primeira dissertação é a psicologia dos cristianismo: o nascimento do cristianismo a partir do espírito do ressentimento, não, conforme se acredita, apenas do “espírito” – um contramovimento essencial, a grande revolta contra o reinado de valores nobres. A segunda dissertação traz a psicologia da consciência: a mesma não é, conforme se acredita, “a voz de Deus no interior do homem” – ela é o instinto da crueldade, que se volta para trás, e para dentro, depois de ver que não pode mais se descarregar para fora. A crueldade, na condição de um dos mais velhos e intransitáveis substratos culturais, é trazida à luz pela primeira vez. A terceira dissertação traz a resposta para a pergunta sobre a origem do poder monstruoso do ideal ascético, do ideal dos sacerdotes, ainda que o mesmo seja o ideal nefasto par excellence, uma vontade para o fim, um ideal da decadénce. Resposta: não porque Deus é ativo na retaguarda dos sacerdotes, conforme sei que se acredita, mas faute de mieux – porque ele foi o único ideal até hoje, porque ele não teve concorrentes. “Pois o homem ainda prefere querer o nada a não querer”...E, sobretudo, faltava um contra-ideal – até vir o Zaratustra...Eu fui compreendido. Três pré-trabalhos decisivos para uma transvaloração de todos os valores...Esse livro contém a primeira psicologia do sacerdote. [1].
*Grifos do autor

2. A ética Nietzschiana


O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) é amplamente reconhecido por sua filosofia da martelada, da contraposição aos preceitos éticos do cristianismo e por sua proposta de transvaloração de todos os valores. Para Nietzsche, a filosofia teria terminado com Sócrates e Platão,  a quem imputa a responsabilidade pela dicotomia entre corpo e alma, premissa para a negação de nossos impulsos naturais e o conseqüente cerceamento da vontade de potência humana.
Por isso, a transvaloração dos valores é tida como sua tentativa de reverter o platonismo vigente e a sua concepção estéril de “ideal”:

“...Em última instância, minha desconfiança com respeito a Platão vai ao fundo: eu o julgo tão extraviado dos instintos fundamentais dos helenos, tão moralizado, tão cristão antecipadamente – ele tem já o conceito ‘bom’ como
conceito supremo – que a propósito do inteiro fenômeno Platão preferiria utilizar, mais que qualquer outra palavra, a dura expressão ‘patranha superior’ ou, se nos é mais agradável ao ouvido, idealismo. Pagou-se caro por que esse ateniense fosse à escola dos egípcios (– ou dos judeus no Egito?...). Na grande falsidade do Cristianismo Platão é aquela ambigüidade e fascinação chamada o ‘ideal’, que tornou possível às naturezas mais nobres da antigüidade o mal-entender-se a si mesmas e o pôr o pé na ponte que levava até a ‘cruz’... E quanto Platão continua havendo no conceito ‘Igreja’, na organização, no sistema, na praxis da Igreja! – Minha recreação, minha predileção, minha cura de todo platonismo foi em todo tempo Tucídides[2].

A proposta ética de Nietzsche pretende, portanto, resgatar os impulsos vitais humanos degenerados pelo cristianismo, que amparado pela escolástica do Medievo, atrelou as concepções helênicas, sobretudo as platônicas, ao seu aparato de regras morais e limitadoras da potência humana. Para isso, Nietzsche propõe uma análise da genealogia da moral, ou seja, da fundamentação histórica da invenção dos valores morais, dissecando as concepções das palavras ‘bem’ e ‘mal’ e destituindo Deus do papel proeminente de legislador de tais preceitos.
Para a sua ética de transvaloração de todos os valores, Nietzsche elege o cristianismo como seu maior adversário. A fim de demonstrar como a moral cristã fez com que os homens perdessem as rédeas de seu destino, negando a vida em detrimento de uma felicidade além-túmulo, Nietzsche procura ao longo de sua obra demolir certezas, contrapor as fundamentações e fábulas cristãs, inverter, de fato, os valores cristãos tidos como bons e morais, e criar valores novos, baseados na humanidade e não nos dogmas divinos:

 “(...) necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão - para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral como conseqüência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa, medicamento,estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o valor desses "valores" como dado, como efetivo, como além de qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao "bom" valor mais elevado que ao "mau", mais elevado no sentido da promoção, utilidade, influência fecunda para o homem (não esquecendo o futuro do homem), E se o contrário fosse a verdade? E se no "bom" houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro?Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo menor, mais baixo?... De modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que precisamente a moral seria o perigo entre os perigos?..[3]

Assim, Nietzsche procura subverter os conceitos de ‘bem’ e ‘mal’, que de acordo com sua genealogia da moral, são produtos das relações de poder entre os homens. Com isso, o filósofo alemão procura despertar as pessoas de seus sonos dogmáticos, de sua aceitação prévia e tácita aos mecanismos de moralidade tidos como verdadeiros. Com sua transvaloração dos valores, Nietzsche pretende repensar os valores, apartando-nos dos grilhões metafísicos. Ao declarar a morte de Deus, Nietzsche proclama a vida humana, convoca os homens a superarem suas barreiras morais em prol de um novo homem, de um super-homem, de uma nova sociedade.
Pelo crivo cristão, a ética nietzschiana pode soar como perfídia, incitação ao mal, à desonra, à corrupção humana. No entanto, o que Nietzsche propõe é o contrário: é a valorização da vida, a reflexão do homem sobre o seu estar no mundo. Sua genealogia da moral, mais do que dissecar os meandros do surgimento da concepção moral cristã, já embasada pelo platonismo grego, procura alicerçar novos valores que estimulem a vida, a potência, a alegria. Para Nietzsche, toda a moralidade vigente seria cerceadora de tais virtudes, fazendo com que os conceitos de bem e mal fossem corrompidos pelo abuso do poder cristão, símbolo da decadência humana.
Para Nietzsche, o cristianismo é imoral, pois determina a luta do homem contra os seus instintos mais básicos, contra a sua própria humanidade. Assim, a mitologia cristã seria a responsável pela crucificação do homem, pelo inventário de culpas a ele atribuído. Graças à invenção de Deus e de seu rebanho de pastores morais, o homem foi reduzido a uma figura submissa de pecador, sofredor voluntário, um fraco, um ser que imputa à alma os mais doces delírios, ao passo que condena o corpo e sua natureza, tornando-se desprezível e incauto.
Assim, a proposta ética de Nietzsche é a de libertação deste homem doente e saqueado pela moralidade cristã. Uma ética que pretende o surgimento do Super-homem, o que inventa novo sentido à sua existência e relações terrenas. O que não espera ser glorificado no além-túmulo e que por isso goza em vida sua libertação. Este novo homem, à luz da ética nietzschiana, passaria a viver, de fato, esta vida, posto ter entendido não haver outra possível. Com isso, a ética de Nietzsche prevê a queda, a marteladas, de quaisquer concepções morais tidas como absolutas, justamente porque plurais. Já não haveria, sob este prisma, verdades eternas, preceitos absolutos. Caberia ao homem, diante da necessidade e da força de potência de cada um, construir os novos alicerces de seu novo estar no mundo.
Com isso, podemos afirmar que o maior legado da ética proposta por Nietzsche seja o da constatação, pelo homem, da inexistência de uma verdade absoluta que não possa ser, diante da necessidade humana, a qualquer momento revista, alterada, repensada. Tal concepção de liberdade moral concederia ao homem a vida a ser vivida na Terra, no dia a dia, e não através da imaginação de um além-túmulo destinado aos que forem cães obedientes das normas clericais. Nietzsche ressuscita o homem quando enterra a Deus, incitando-o a viver a totalidade de uma vida repleta de potência, de alegria dionisíaca, afastado da inversão perversa da moralidade que o cristianismo nos levou a crer.

3. A ética hegeliana


            Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831) foi um dos mais importantes pensadores da humanidade, precursor ao promover um diálogo efetivo entre a História e a Filosofia, o que terminaria por alterar toda a concepção humana sobre ambas as ciências.
Um dos conceitos principais de Hegel é o de que somos seres históricos. Essa concepção sobre o homem foi a responsável por Hegel ter realizado fortes críticas ao empirismo e ao inatismo, sobretudo na figura de Kant, influenciando com isso toda a posteridade ao postular que a Razão molda a História.
Com isso, Hegel criticou os empiristas e o seu conceito de razão enquanto experiência, bem como aos kantianos e sua idéia de razão a priori. Ou seja, os empiristas defendiam que o conhecimento advinha do contato do sujeito com o objeto, fornecendo assim a razão humana. Já os kantianos, supunham que o conhecimento fosse advindo de uma noção inata de dever. Hegel refutou ambas as teorias, afirmando que a razão é histórica. Nas palavras da professora Marilena Chauí:

Ao afirmar que a razão é histórica, Hegel não está, de modo algum, dizendo que a razão é algo relativo, que vale hoje e não vale amanhã, que serve aqui e serve ali, que cada época não alcança verdades universais. Não. O que Hegel está dizendo é que a mudança, a transformação da razão e de seus conteúdos é obra racional da própria razão. A razão não é uma vítima do tempo, que lhe roubaria a verdade, a universalidade, a necessidade. A razão não está na História; ela é a História. A razão não está no tempo; ela é o tempo. Ela dá sentido ao tempo. [4]
*Grifos da autora

Assim, a razão histórica de Hegel é baseada na dialética para a contraposição de idéias, tal qual Heráclito e a sua harmonia dos opostos. Ou seja, a razão histórica é o produto das teses e antíteses formuladas ao longo do processo histórico, sendo propriedade da razão abarcar todas essas contradições e depois vencê-las, refletindo a verdade contida em cada uma delas.
Com base no conceito de razão histórica, poderemos, portanto, analisar a ética hegeliana à luz de tais preceitos. Se como afirmou Hegel somos seres históricos, nossas vontades são influenciadas, diretamente, pela cultura presente e exercida em nossa sociedade. Assim, mais uma vez o pensamento de Hegel se contrapõe ao de Kant, que afirmava que o exercício da moral era determinado pela noção inata de Dever. Para Hegel, a moralidade de cada indivíduo não poderia ser pautada por uma noção a priori, mas somente dada a partir da interação deste individuo com a sociedade.
Para Hegel, portanto, a moralidade é produto de um conjunto de regras e costumes sociais e culturais, que abarcam as diversas esferas da vida humana (política, religiosa, familiar) e que vão sendo repassados de geração em geração, de maneira a atender, concomitantemente, os interesses pessoais e os coletivos dos indivíduos.  Ou seja, a dialética entre os interesses subjetivos do indivíduo e os interesses objetivos do cidadão que vive em sociedade. Ainda nas palavras de Chauí:

A vida ética é o acordo e a harmonia entre a vontade subjetiva individual e a vontade objetiva cultural. Realiza-se plenamente quando interiorizamos nossa Cultura, de tal maneira que praticamos espontânea e livremente seus costumes e valores, sem neles pensarmos, sem os discutirmos, sem deles duvidarmos, porque são como nossa própria vontade os deseja. O que é, então, o dever? O acordo pleno entre nossa vontade subjetiva individual e a totalidade ética ou moralidade. [5]

            Desta maneira, para Hegel, a Ética, assim como a razão, é histórica e dispõe de regras próprias e válidas dentro de determinado espaço histórico. Com isso, podemos afirmar que a ética hegeliana dispõe que ser ético compreende que o indivíduo aja de acordo com as premissas morais de seu tempo, interiorizando tais conceitos e repassando-os para a geração seguinte. Assim, as regras morais hegelianas não são engessadas, tampouco dependentes exclusivamente da relação entre sujeito e objeto da relação (empiristas), tampouco produto de um imperativo categórico, como em Kant.
            Assim, as regras morais e sua concepção ética são históricas e determinam o comportamento esperado por seus indivíduos através do equilíbrio entre as vontades pessoais dos sujeitos sociais, com os desejos coletivos de determinado tempo histórico. Por isso, quando há uma divergência entre tais interesses, dá-se início a um novo tempo histórico, onde novos modelos de condutas morais vão sendo formulados, de maneira a retomar o equilíbrio dessa relação de individualidade com a sociedade.
            Com isso, podemos afirmar que a contradição, assim como para o pré-socrático Heráclito, seja em Hegel o motor para o desenvolvimento do pensamento humano. Assim, somos seres históricos na medida em que a História se manifesta como o próprio pensamento humano em ato, ao mesmo passo que a ética torna-se o equilíbrio entre nossos desejos individuais e essa realização do pensamento coletivo na História.
            No que se refere à religiosidade (concepção intrínseca à moralidade humana), Hegel também entende Deus como realizável historicamente, tido como para além de uma transcendência distante dos homens:

Ao discutir a religião é importante perguntar se ela reconhece a verdade, ou
Idéia, apenas em sua forma isolada ou em sua verdadeira unidade. Em sua forma isolada: quando Deus é concebido como o Ser abstrato mais elevado, Senhor dos Céus e da Terra, transcendendo o mundo, além e distante da realidade humana — ou em sua unidade: Deus como a união do universal com o individual, em Quem mesmo o individual é visto de maneira positiva, na Idéia da encarnação. A religião é a esfera onde um povo se dá a definição daquilo que encara como sendo o Verdadeiro. Uma definição contém tudo o que pertence à essência de um objeto, reduzindo sua natureza a uma característica fundamental simples como foco para todas as outras características — a alma universal de todos os particulares. Assim, a concepção de Deus é a fundamentação geral de um povo. [6]
            Assim, Hegel postula que Deus também pode ser encarado de maneira dialética: de forma transcendental e afastado do povo, ou como unidade, na comunhão do individual com o universal. Mas, para isso, Hegel afirma que a religião deve ser interiorizada pelos indivíduos, de maneira que o consentimento dos homens aos preceitos divinos, não entrem em conflito com seus interesses pessoais:

(...) o que nada mais significa senão o fato de que os indivíduos devam temer a Deus para que estejam dispostos e preparados para cumprir o seu dever, pois a obediência ao príncipe e à lei está naturalmente ligada à reverência para com Deus. É verdade que a reverência a Deus, que eleva o universal acima do particular, pode voltar-se contra o particular — transformando-se em fanatismo — e trabalhar contra o Estado, queimando e destruindo seus edifícios e instituições. Por isso acredita-se que a reverência para com Deus deva ser temperada e mantida em certo grau de frieza, a fim de que não ataque e destrua o que por ela deve ser protegido e preservado. A possibilidade de um desastre desse gênero existe nela, pelo menos em estado latente. (...) Assim, para que preserve o Estado, a religião deve ser levada para dentro dele — aos borbotões — de modo a que seja impressa na mente do povo. É bastante certo que o homem deva ser educado para a religião, mas não como se para algo que ainda não existe. Quando dizemos que o Estado é baseado na religião e que tem nela as suas raízes, queremos dizer que essencialmente ele surgiu dela e que hoje e sempre continuará a originar-se dela. Ou seja, os princípios do Estado devem ser vistos como válidos em si e por si mesmo, o que só pode acontecer até onde eles sejam reconhecidos como determinações da própria natureza divina. [7]
           
            Em suma, Hegel defende que a ética é o equilíbrio entre os desejos individuais e os da sociedade, ao passo que o Estado que abarca essa dialética dos interesses, é oriundo do Divino. No entanto, este Divino não se trata de um Ser Transcendental, afastado do povo. Mas uno ao povo, intrínseco às concepções do Estado. Assim, o indivíduo que interioriza os preceitos divinos, interioriza também o Estado como produto de tais concepções, exercendo a moralidade não mais como sacrifício, mas como liberdade equilibrada entre a verdade e a consciência de si. Assim, Deus também se manifesta em Hegel como a comunhão entre o individual e o coletivo, tal qual o Estado, tal qual o exercício ético a essas concepções vinculado.


4. Comparações entre a ética hegeliana e nietzschiana

            É clara a dicotomia entre a ética hegeliana e a nietzschiana. Se para Hegel a ética nunca é individual, mas diretamente vinculada aos interesses do Estado e a supremacia Divina, para Nietzsche a ética é sempre individual, próprio nos espíritos livres e dissociados do rebanho formado pelo cristianismo.
Se para Hegel o homem somente é livre através do Estado e de sua razão histórica, Nietzsche ataca todo o poder instaurado (político, religioso, social) em detrimento ao Super-homem, o homem capaz de subverter todos os valores tidos como definitivos.
Para Hegel, o cristianismo deveria ser considerado como parte da humanidade, perdendo o status transcendental que afastava dos homens os preceitos de Jesus Cristo. Já Nietzsche afirmou a morte de Deus e defendeu a necessária insurgência dos homens à moralidade cristã, que de acordo com ele, defendia os fracos e prejudicava os fortes, numa moralidade que era contra a própria vida.
Ainda em Hegel, o exercício ético se daria mediante o equilíbrio dialético entre os interesses privados e os coletivos, suprimindo a diferença entre os homens sob o Estado. Já em Nietzsche, sua defesa ao dionisíaco suprime qualquer similaridade entre os homens, afirmando a vida e a diferença necessária e instintiva presente em cada um de nós.  Sobre essa diferença entre os dois filósofos, diz Gilles Deleuze:

Não existe compromisso possível entre Hegel e Nietzsche. A filosofia de Nietzsche tem grande alcance polêmico; ela forma uma antidialética absoluta, propõe-se denunciar todas as mistificações que encontram na dialética um último refúgio. [8]



            No entanto, há um ponto de convergência nas teorias éticas dos dois filósofos alemães. Ambos parecem ter seguido os passos de Heráclito de Éfeso, ao tratarem do choque entre os opostos e do desenvolvimento humano a partir dessa perspectiva. Para Hegel, a dialética entre os interesses privados e coletivos deveriam estar harmonizados, de forma que o homem pudesse exercer sua ética social de maneira livre e não de maneira imposta e opressora. Da mesma maneira, Nietzsche, o filósofo trágico, também trata da tensão entre o apolíneo e o dionisíaco, do embate entre a racionalidade e os instintos naturais do homem.
            Logo, nota-se que embora tenham tratado da concepção ética sob premissas distintas e que tenham desenvolvido leituras díspares de Heráclito, ambos parecem ter visto no movimento a evolução da sociedade e a autonomia do homem, aparentando ao menos um ponto ético em comum: a idéia de que não há regra moral definitiva, tampouco concepção ética que não passe pelo crivo da sociedade – seja para submeter-se a ela, seja para propor sua transvaloração – mas mudando sempre.                        

5. Conclusão – Contribuições para a compreensão das relações do mundo contemporâneo.


O homem é um ser moral que pauta sua conduta com base nas premissas éticas previstas pela sociedade. No entanto, a sociedade muda e com ela, mudam os ideais de moralidade previstos por cada agrupamento social. Ainda que se defenda que os padrões morais sejam mais flexíveis que os éticos, que são tidos como universais, menos regionais que os parâmetros morais, não há preceito ético que seja absoluto em todas as sociedades. Até o direito à vida, aparentemente um dogma ético indiscutível, encontra em algumas tribos a sua concepção apartada dos conceitos éticos da sociedade dita civilizada.
Essa divergência entre pontos de vista e ao mesmo tempo, a necessidade do homem ver-se protegido por um respaldo ético que paute o comportamento humano para o bem da vida e da propriedade privada, encontra nos dois pensadores aqui estudados, Hegel e Nietzsche, símbolos de dicotomia.
Embora ambos tenham em Heráclito um ponto de apoio para a filosofia moral que formularam, eles divergem tacitamente quanto à dialética. Para Hegel, a ética é um exercício de equilíbrio entre os interesses individuais e os interesses dos cidadãos enquanto sob o crivo do Estado. Já para Nietzsche, o Estado é a figura assujeitadora da massa, que impotente diante das regras morais a ela impostas, vê sua humanidade esvair-se e com ela, sua vontade de potência, intrínseca à natureza humana, também escapar por entre as mãos.
Assim, quaisquer filosofias morais que pretendam dar cabo da difícil tarefa de regulamentar a convivência em sociedade, são úteis para a compreensão do fenômeno social moderno. Contudo, havendo que escolher apenas um dos dois modelos éticos para a análise das relações humanas no mundo contemporâneo, escolheremos aqui Nietzsche.
Quando Nietzsche propõe uma ética dionisíaca, pautada nas paixões humanas, no dizer sim à vida, na relação de força entre o mais forte e o mais fraco, a sociedade cristã a entende como um atentado à boa convivência humana. Contudo, tal análise pauta-se nos ideais cristãos que terminaram por separar, talvez de maneira irreparável, as noções de corpo e alma. Com isso, entende-se que os prazeres do corpo devem ser rechaçados em detrimento da alma, esta sim capaz de promover a paz entre os homens e o seu encontro com o Ser transcendental.
Mas supondo que Deus seja uma invenção humana e não o contrário, compreende-se o que Nietzsche postulou com sua transvaloração dos valores, atestando estarem os valores todos entendidos de maneira equivocada, de forma que os atuais valores cristãos impeçam a livre autonomia do homem para o aproveitamento da vida – apenas esta vida – sem quaisquer possibilidades de vida além-túmulo.
Hoje, os cristãos e não cristãos vivem acometidos pela culpa, pelo eterno conflito entre os seus desejos mais primitivos e as convenções sociais que impedem o seu livre gozo. Já nascemos pecadores e apenas com base em nosso comportamento em vida, é que teremos alguma chance de perdão divino numa vida futura, ao lado de Deus pai criador. Ou seja, o cristianismo invalida a vida humana em prol de uma vida metafísica, sonhada, para além de nossas capacidades terrenas. E se nos sujeitamos a tais limitações, é por nosso desejo humano, demasiado humano, de sermos imortais.
Ao homem não basta o tanto que lhe cabe de vida física. Queremos mais, queremos a eternidade. Em busca do ideal de eternidade, procriamos, estudamos, escrevemos livros, nos relacionamos. Todas as nossas atitudes, ainda que camufladas em caridade, subserviência a Deus ou moralidade cristã, nada mais fazem do que garantir, hipoteticamente, nosso sucesso no além-túmulo. Mas se ao contrário, fôssemos capazes de transvalorar esses conceitos cristãos e retomarmos as rédeas de nossas vidas, talvez enxergássemos que nossos desejos precisam ser satisfeitos agora, nessa vida, no alcance de nossa vida humana.
Tal transvaloração em nada mudaria o cenário que já vemos em exercício humano, apenas afastaríamos a culpa de nossas orações noturnas, que deixariam de existir. A sociedade, por mais que negue, é nietzschiana. O homem, movido por seus impulsos animais, é nietzschiano. Essa afirmação pode ser constatada nas relações de mercado (pode mais quem consome mais – consome mais quem estuda mais – quem estuda mais, ganha mais – quem ganha mais consome mais...). Assim, o nosso assumir dionisíaco apenas faria com que nos sentíssemos humanos, animais humanos que somos. Afastaria de nós a exigência de sermos o que não seremos nunca, pois somos animais, simples animais, ainda que racionais.
Na lei da selva ou na lei da cidade, sobrevivem apenas os mais fortes. Quaisquer noções de caridade, bondade e fraternidade, nada mais são do que máscaras que tentam sobrepujar essa lei animal. Estendemos a mão a um mendigo na rua, não pensando na vida daquele indivíduo excluído da sociedade. Se o fazemos, é pensando em nossa própria sobrevivência, como o fazem todos os animais. Estendemos a mão para que possamos dormir melhor, para que nos sintamos comungando com um Deus que não existe, cujas promessas nunca serão cumpridas – e se o forem, é no além-túmulo não comprovado, hipotético, apenas sonhado.
Por este motivo, a leitura nietzschiana da sociedade apenas faria com que nos despíssemos dos falsos pudores que a todos assola. Não mudariam as relações entre os indivíduos, simplesmente porque as relação já se dão na lei do mais forte, deste indivíduo que procura vencer a corda estendida entre o homem e o animal. Como fez Maquiavel em O Príncipe, deixaríamos de supor como a vida poderia ser vivida por um prisma da ética cristã, que é antinatural e passaríamos a vivê-la como a vida de fato se apresenta aos bichos humanos que somos: o mais forte em detrimento do mais fraco.
Se este é o modelo ideal de sociedade ou a maneira mais justa de convivência entre os homens, é uma questão para outra reflexão. No entanto, seríamos mais sinceros com relação à nossa própria existência, com o histórico de luta por sobrevivência ao qual estamos todos submetidos. Vivemos em estado de guerra e uma leitura nietzschiana da sociedade nos ajudaria a compreender que não precisamos nos envergonhar disso. Somos humanos, demasiado humanos, e a humanidade requer força, coragem e a aceitação do enfrentamento do trágico, que não pode e nem deve ser sublimado da existência humana. Sendo possível a transvaloração de todos os valores, manteríamos a sociedade tal qual ela se configura, haja vista sermos animais. Mas a noção de culpa por essa condição seria extinta, possibilitando ao homem o pleno exercício de sua humanidade, exercício em vida, que nada esperaria de ilusórias congratulações no mundo de lá.

6. Bibliografia


CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2000. Disponível em: http://docs.thinkfree.com/docs/view.php?dsn=567651

HEGEL, Geord W. Friedrich. A Razão na História: Uma Introdução Geral à Filosofia da História. Ed. Centauro, São Paulo, 2004. Disponível em: http://www.deboraludwig.com.br/arquivos/hegel_razao_na_historia.pdf

NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. Ed. Cia das Letras, São Paulo, 2009. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/3623204/Friedrich-Nietzsche-Genealogia-da-Moral-ptbr

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Ed. L&PM Pocket, São Paulo, 2003.


7. E-Referências

ARALDI, Claudemir Luís. Nietzsche como crítico da Moral. Disponível em: http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/27-28/02-27-28.pdf

BARROS, Alberto Tasso. A Ética na Filosofia de Friedrich. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/14860409/A-etica-na-Filosofia-de-Friedrich-Nietsche

CALDAS, Pedro Spinola Pereira. História, Ação e Cultura: Um esboço de comparação entre Hegel e Nietzsche. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/3506345/Caldas-Pedro-Comparacao-Nietzsche-e-Hegel-artigo

COSTA, Joabson Bruno de Araújo. Filosofia da Historia. Disponível em: http://pt.scribd.com/arqueology/d/16988659-Hegel-e-Nietzsche

DENNIS, Sandro. Ética e moral. Disponível em: http://circulocubico.wordpress.com/2008/04/04/tica-e-moral/

JÚNIOR, Gilmar Kruchinski. Ética e Moral em Hegel. Disponível em: http://pt.scribd.com/neildesc/d/42022677-Etica-e-Moral-em-Hegel

JÚNIOR, Osvaldo Giacóia. O Platão de Nietzsche. O Nietzsche de Platão. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/gen/pdf/cn_03_02.pdf

MARTON, Scarlett. Nietzsche e Hegel, Leitores  de Heráclito – A Propósito de uma Sentença  de Zaratustra: “Da Superação de Si”. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D21_Nietzsche_e_Hegel_leitores_de_Heraclito.pdf

MARTON, Scarlett. Uma ética nietzschiana. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/08/uma-etica-nietzschiana/

MORAES, Jorge. Heráclito entre Hegel e Nietzsche. Disponível em: http://www.unirio.br/morpheusonline/jorge%20moraes.htm

NEVES, Maria Helena Franca. Bem-aventurada vida ética. Disponível em: http://www.hegelbrasil.org/rev04c.htm

RODRIGUES, Luis. O racionalismo é a negação da vida. Disponível em: http://filosofia.platanoeditora.pt/Site%20Inicial/Nietzsche.html


[1] NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo.Editora L&PM Pocket. Tradução Marcelo Backes. 2003. Pág. 129
[2] NIETZSCHE apud GIACÓIA. O Platão de Nietzsche. O Nietzsche de Platão. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/gen/pdf/cn_03_02.pdf
[3] NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. Pág. 4. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/3623204/Friedrich-Nietzsche-Genealogia-da-Moral-ptbr
[4]CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2000. Disponível em: http://docs.thinkfree.com/docs/view.php?dsn=567651

[5] Idem
[6]HEGEL, Geord W. Friedrich. A Razão na História: Uma Introdução Geral à Filosofia da História. Ed. Centauro, São Paulo, 2004. Disponível em: http://www.deboraludwig.com.br/arquivos/hegel_razao_na_historia.pdf

[7] HEGEL, Geord W. Friedrich. A Razão na História: Uma Introdução Geral à Filosofia da História. Ed. Centauro, São Paulo, 2004. Disponível em: http://www.deboraludwig.com.br/arquivos/hegel_razao_na_historia.pdf

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