1. Introdução
O objetivo deste trabalho é analisar as éticas hegeliana e nietzschiana,
sob o prisma do livro A Genealogia da Moral, de Friedrich Nietzsche. Para
tanto, faz-se necessário ao menos um resumo das principais idéias propostas
pelo filósofo alemão, autor na referida obra. Como o próprio Nietzsche realizou
este apanhado em seu livro Ecce Homo, optamos aqui por transcrevê-lo:
As três dissertações que compõem essa genealogia são,
talvez, no que diz respeito à expressão, intenção e arte de surpreender, a
coisa mais sinistra que já foi escrita até hoje. Dionísio é, a gente o sabe,
também o deus das trevas...A cada vez, um princípio calculado para desorientar, frio, científico, até mesmo irônico,
intencionalmente em primeiro plano, intencionalmente demorado. Aos poucos, mais
intranqüilidade; raios esparsos; verdades assaz desagradáveis vindas da
distância e cada vez mais altas em seu ribombar surdo – até que enfim se
alcançou um tempo feroce, onde tudo
impulsiona adiante com uma tensão colossal. No final de cada vez, sob detonações
totalmente assustadoras, uma nova
verdade se torna visível entre as nuvens pesadas...A verdade da primeira dissertação é a psicologia dos
cristianismo: o nascimento do cristianismo a partir do espírito do
ressentimento, não, conforme se
acredita, apenas do “espírito” – um contramovimento essencial, a grande revolta
contra o reinado de valores nobres.
A segunda dissertação traz a
psicologia da consciência: a mesma não é, conforme se acredita, “a voz de Deus no interior do homem” –
ela é o instinto da crueldade, que se volta para trás, e para dentro, depois de
ver que não pode mais se descarregar para fora. A crueldade, na condição de um
dos mais velhos e intransitáveis substratos culturais, é trazida à luz pela
primeira vez. A terceira dissertação
traz a resposta para a pergunta sobre a origem do poder monstruoso do ideal ascético, do ideal dos sacerdotes, ainda
que o mesmo seja o ideal nefasto par excellence, uma vontade para o fim,
um ideal da decadénce. Resposta: não porque Deus é ativo na retaguarda
dos sacerdotes, conforme sei que se acredita, mas faute de mieux – porque ele
foi o único ideal até hoje, porque ele não teve concorrentes. “Pois o homem
ainda prefere querer o nada a não
querer”...E, sobretudo, faltava um contra-ideal
– até vir o Zaratustra...Eu fui compreendido. Três pré-trabalhos decisivos
para uma transvaloração de todos os valores...Esse livro contém a primeira
psicologia do sacerdote. [1].
*Grifos do
autor
2.
A
ética Nietzschiana
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) é amplamente reconhecido
por sua filosofia da martelada, da contraposição aos preceitos éticos do
cristianismo e por sua proposta de transvaloração de todos os valores. Para Nietzsche,
a filosofia teria terminado com Sócrates e Platão, a quem imputa a responsabilidade pela
dicotomia entre corpo e alma, premissa para a negação de nossos impulsos
naturais e o conseqüente cerceamento da vontade de potência humana.
Por isso, a transvaloração dos valores é tida como sua tentativa de
reverter o platonismo vigente e a sua concepção estéril de “ideal”:
“...Em última
instância, minha desconfiança com respeito a Platão vai ao fundo: eu o julgo
tão extraviado dos instintos fundamentais dos helenos, tão moralizado, tão
cristão antecipadamente – ele tem já o conceito ‘bom’ como
conceito
supremo – que a propósito do inteiro fenômeno Platão preferiria utilizar, mais
que qualquer outra palavra, a dura expressão ‘patranha superior’ ou, se nos é
mais agradável ao ouvido, idealismo. Pagou-se caro por que esse ateniense fosse
à escola dos egípcios (– ou dos judeus no Egito?...). Na grande falsidade do
Cristianismo Platão é aquela ambigüidade e fascinação chamada o ‘ideal’, que
tornou possível às naturezas mais nobres da antigüidade o mal-entender-se a si
mesmas e o pôr o pé na ponte que levava até a ‘cruz’... E quanto Platão
continua havendo no conceito ‘Igreja’, na organização, no sistema, na praxis da
Igreja! – Minha recreação, minha predileção, minha cura de todo platonismo foi
em todo tempo Tucídides”[2].
A proposta ética de Nietzsche pretende, portanto, resgatar os impulsos
vitais humanos degenerados pelo cristianismo, que amparado pela escolástica do
Medievo, atrelou as concepções helênicas, sobretudo as platônicas, ao seu
aparato de regras morais e limitadoras da potência humana. Para isso, Nietzsche
propõe uma análise da genealogia da moral, ou seja, da fundamentação histórica
da invenção dos valores morais, dissecando as concepções das palavras ‘bem’ e
‘mal’ e destituindo Deus do papel proeminente de legislador de tais preceitos.
Para a sua ética de transvaloração de todos os valores, Nietzsche elege o
cristianismo como seu maior adversário. A fim de demonstrar como a moral cristã
fez com que os homens perdessem as rédeas de seu destino, negando a vida em
detrimento de uma felicidade além-túmulo, Nietzsche procura ao longo de sua
obra demolir certezas, contrapor as fundamentações e fábulas cristãs, inverter,
de fato, os valores cristãos tidos como bons e morais, e criar valores novos,
baseados na humanidade e não nos dogmas divinos:
“(...) necessitamos de uma crítica
dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em
questão - para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias
nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral como
conseqüência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas
também moral como causa, medicamento,estimulante, inibição, veneno), um
conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o
valor desses "valores" como dado, como efetivo, como além de qualquer
questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao
"bom" valor mais elevado que ao "mau", mais elevado no
sentido da promoção, utilidade, influência fecunda para o homem (não esquecendo
o futuro do homem), E se o contrário fosse a verdade? E se no "bom"
houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um
narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do
futuro?Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo
menor, mais baixo?... De modo que precisamente a moral seria culpada de que
jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que
precisamente a moral seria o perigo entre os perigos?..[3]”
Assim, Nietzsche procura subverter os conceitos de ‘bem’ e ‘mal’, que de
acordo com sua genealogia da moral, são produtos das relações de poder entre os
homens. Com isso, o filósofo alemão procura despertar as pessoas de seus sonos
dogmáticos, de sua aceitação prévia e tácita aos mecanismos de moralidade tidos
como verdadeiros. Com sua transvaloração dos valores, Nietzsche pretende
repensar os valores, apartando-nos dos grilhões metafísicos. Ao declarar a
morte de Deus, Nietzsche proclama a vida humana, convoca os homens a superarem
suas barreiras morais em prol de um novo homem, de um super-homem, de uma nova
sociedade.
Pelo crivo cristão, a ética nietzschiana pode soar como perfídia,
incitação ao mal, à desonra, à corrupção humana. No entanto, o que Nietzsche propõe
é o contrário: é a valorização da vida, a reflexão do homem sobre o seu estar
no mundo. Sua genealogia da moral, mais do que dissecar os meandros do
surgimento da concepção moral cristã, já embasada pelo platonismo grego,
procura alicerçar novos valores que estimulem a vida, a potência, a alegria.
Para Nietzsche, toda a moralidade vigente seria cerceadora de tais virtudes, fazendo
com que os conceitos de bem e mal fossem corrompidos pelo abuso do poder cristão,
símbolo da decadência humana.
Para Nietzsche, o cristianismo é imoral, pois determina a luta do homem
contra os seus instintos mais básicos, contra a sua própria humanidade. Assim,
a mitologia cristã seria a responsável pela crucificação do homem, pelo inventário
de culpas a ele atribuído. Graças à invenção de Deus e de seu rebanho de
pastores morais, o homem foi reduzido a uma figura submissa de pecador,
sofredor voluntário, um fraco, um ser que imputa à alma os mais doces delírios,
ao passo que condena o corpo e sua natureza, tornando-se desprezível e incauto.
Assim, a proposta ética de Nietzsche é a de libertação deste homem doente
e saqueado pela moralidade cristã. Uma ética que pretende o surgimento do
Super-homem, o que inventa novo sentido à sua existência e relações terrenas. O
que não espera ser glorificado no além-túmulo e que por isso goza em vida sua
libertação. Este novo homem, à luz da ética nietzschiana, passaria a viver, de
fato, esta vida, posto ter entendido não haver outra possível. Com isso, a
ética de Nietzsche prevê a queda, a marteladas, de quaisquer concepções morais
tidas como absolutas, justamente porque plurais. Já não haveria, sob este
prisma, verdades eternas, preceitos absolutos. Caberia ao homem, diante da
necessidade e da força de potência de cada um, construir os novos alicerces de
seu novo estar no mundo.
Com isso, podemos afirmar que o maior legado da ética proposta por
Nietzsche seja o da constatação, pelo homem, da inexistência de uma verdade
absoluta que não possa ser, diante da necessidade humana, a qualquer momento
revista, alterada, repensada. Tal concepção de liberdade moral concederia ao
homem a vida a ser vivida na Terra, no dia a dia, e não através da imaginação
de um além-túmulo destinado aos que forem cães obedientes das normas clericais.
Nietzsche ressuscita o homem quando enterra a Deus, incitando-o a viver a
totalidade de uma vida repleta de potência, de alegria dionisíaca, afastado da
inversão perversa da moralidade que o cristianismo nos levou a crer.
3.
A
ética hegeliana
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770
– 1831) foi um dos mais importantes pensadores da humanidade, precursor ao
promover um diálogo efetivo entre a História e a Filosofia, o que terminaria
por alterar toda a concepção humana sobre ambas as ciências.
Um dos conceitos principais de Hegel é o de que somos seres históricos. Essa
concepção sobre o homem foi a responsável por Hegel ter realizado fortes
críticas ao empirismo e ao inatismo, sobretudo na figura de Kant, influenciando
com isso toda a posteridade ao postular que a Razão molda a História.
Com isso, Hegel criticou os empiristas e o seu conceito de razão enquanto
experiência, bem como aos kantianos e sua idéia de razão a priori. Ou seja, os
empiristas defendiam que o conhecimento advinha do contato do sujeito com o
objeto, fornecendo assim a razão humana. Já os kantianos, supunham que o
conhecimento fosse advindo de uma noção inata de dever. Hegel refutou ambas as
teorias, afirmando que a razão é histórica. Nas palavras da professora Marilena
Chauí:
Ao afirmar que a razão é histórica, Hegel não está, de
modo algum, dizendo que a razão é algo relativo, que vale hoje e não vale
amanhã, que serve aqui e serve ali, que cada época não alcança verdades
universais. Não. O que Hegel está dizendo é que a mudança, a transformação da
razão e de seus conteúdos é obra racional da própria razão. A razão não é uma
vítima do tempo, que lhe roubaria a verdade, a universalidade, a necessidade. A
razão não está na História; ela é a História. A razão não está no tempo; ela é o tempo. Ela dá sentido ao tempo. [4]
*Grifos da autora
Assim, a razão histórica de Hegel é baseada na dialética para a
contraposição de idéias, tal qual Heráclito e a sua harmonia dos opostos. Ou
seja, a razão histórica é o produto das teses e antíteses formuladas ao longo
do processo histórico, sendo propriedade da razão abarcar todas essas
contradições e depois vencê-las, refletindo a verdade contida em cada uma
delas.
Com base no conceito de razão histórica, poderemos, portanto, analisar a
ética hegeliana à luz de tais preceitos. Se como afirmou Hegel somos seres
históricos, nossas vontades são influenciadas, diretamente, pela cultura
presente e exercida em nossa sociedade. Assim, mais uma vez o pensamento de
Hegel se contrapõe ao de Kant, que afirmava que o exercício da moral era
determinado pela noção inata de Dever. Para Hegel, a moralidade de cada
indivíduo não poderia ser pautada por uma noção a priori, mas somente dada a
partir da interação deste individuo com a sociedade.
Para Hegel, portanto, a moralidade é produto de um conjunto de regras e
costumes sociais e culturais, que abarcam as diversas esferas da vida humana
(política, religiosa, familiar) e que vão sendo repassados de geração em
geração, de maneira a atender, concomitantemente, os interesses pessoais e os
coletivos dos indivíduos. Ou seja, a
dialética entre os interesses subjetivos do indivíduo e os interesses objetivos
do cidadão que vive em sociedade. Ainda nas palavras de Chauí:
A vida ética é o acordo e a harmonia entre a vontade
subjetiva individual e a vontade objetiva cultural. Realiza-se plenamente
quando interiorizamos nossa Cultura, de tal maneira que praticamos espontânea e
livremente seus costumes e valores, sem neles pensarmos, sem os discutirmos,
sem deles duvidarmos, porque são como nossa própria vontade os deseja. O que é,
então, o dever? O acordo pleno entre nossa vontade subjetiva individual e a
totalidade ética ou moralidade. [5]
Desta maneira, para Hegel, a Ética,
assim como a razão, é histórica e dispõe de regras próprias e válidas dentro de
determinado espaço histórico. Com isso, podemos afirmar que a ética hegeliana
dispõe que ser ético compreende que o indivíduo aja de acordo com as premissas
morais de seu tempo, interiorizando tais conceitos e repassando-os para a
geração seguinte. Assim, as regras morais hegelianas não são engessadas,
tampouco dependentes exclusivamente da relação entre sujeito e objeto da
relação (empiristas), tampouco produto de um imperativo categórico, como em
Kant.
Assim, as regras morais e sua
concepção ética são históricas e determinam o comportamento esperado por seus
indivíduos através do equilíbrio entre as vontades pessoais dos sujeitos
sociais, com os desejos coletivos de determinado tempo histórico. Por isso,
quando há uma divergência entre tais interesses, dá-se início a um novo tempo
histórico, onde novos modelos de condutas morais vão sendo formulados, de
maneira a retomar o equilíbrio dessa relação de individualidade com a
sociedade.
Com isso, podemos afirmar que a
contradição, assim como para o pré-socrático Heráclito, seja em Hegel o motor
para o desenvolvimento do pensamento humano. Assim, somos seres históricos na
medida em que a História se manifesta como o próprio pensamento humano em ato,
ao mesmo passo que a ética torna-se o equilíbrio entre nossos desejos
individuais e essa realização do pensamento coletivo na História.
No que se refere à religiosidade
(concepção intrínseca à moralidade humana), Hegel também entende Deus como
realizável historicamente, tido como para além de uma transcendência distante
dos homens:
Ao discutir a
religião é importante perguntar se ela reconhece a verdade, ou
Idéia, apenas
em sua forma isolada ou em sua verdadeira unidade. Em sua forma isolada: quando
Deus é concebido como o Ser abstrato mais elevado, Senhor dos Céus e da Terra,
transcendendo o mundo, além e distante da realidade humana — ou em sua unidade:
Deus como a união do universal com o individual, em Quem mesmo o individual é
visto de maneira positiva, na Idéia da encarnação. A religião é a esfera onde
um povo se dá a definição daquilo que encara como sendo o Verdadeiro. Uma
definição contém tudo o que pertence à essência de um objeto, reduzindo sua
natureza a uma característica fundamental simples como foco para todas as
outras características — a alma universal de todos os particulares. Assim, a
concepção de Deus é a fundamentação geral de um povo. [6]
Assim,
Hegel postula que Deus também pode ser encarado de maneira dialética: de forma
transcendental e afastado do povo, ou como unidade, na comunhão do individual
com o universal. Mas, para isso, Hegel afirma que a religião deve ser
interiorizada pelos indivíduos, de maneira que o consentimento dos homens aos
preceitos divinos, não entrem em conflito com seus interesses pessoais:
(...) o que nada mais significa senão o fato de que os
indivíduos devam temer a Deus para que estejam dispostos e preparados para
cumprir o seu dever, pois a obediência ao príncipe e à lei está naturalmente
ligada à reverência para com Deus. É verdade que a reverência a Deus, que eleva
o universal acima do particular, pode voltar-se contra o particular —
transformando-se em fanatismo — e trabalhar contra o Estado, queimando e
destruindo seus edifícios e instituições. Por isso acredita-se que a reverência
para com Deus deva ser temperada e mantida em certo grau de frieza, a fim de
que não ataque e destrua o que por ela deve ser protegido e preservado. A
possibilidade de um desastre desse gênero existe nela, pelo menos em estado
latente. (...) Assim, para que preserve o Estado, a religião deve ser levada
para dentro dele — aos borbotões — de modo a que seja impressa na mente do
povo. É bastante certo que o homem deva ser educado para a religião, mas não
como se para algo que ainda não existe. Quando dizemos que o Estado é baseado
na religião e que tem nela as suas raízes, queremos dizer que essencialmente
ele surgiu dela e que hoje e sempre continuará a originar-se dela. Ou seja, os
princípios do Estado devem ser vistos como válidos em si e por si mesmo, o que
só pode acontecer até onde eles sejam reconhecidos como determinações da
própria natureza divina. [7]
Em suma, Hegel defende que a ética é
o equilíbrio entre os desejos individuais e os da sociedade, ao passo que o
Estado que abarca essa dialética dos interesses, é oriundo do Divino. No
entanto, este Divino não se trata de um Ser Transcendental, afastado do povo.
Mas uno ao povo, intrínseco às concepções do Estado. Assim, o indivíduo que
interioriza os preceitos divinos, interioriza também o Estado como produto de
tais concepções, exercendo a moralidade não mais como sacrifício, mas como
liberdade equilibrada entre a verdade e a consciência de si. Assim, Deus também
se manifesta em Hegel como a comunhão entre o individual e o coletivo, tal qual
o Estado, tal qual o exercício ético a essas concepções vinculado.
4.
Comparações
entre a ética hegeliana e nietzschiana
É clara a dicotomia entre a ética
hegeliana e a nietzschiana. Se para Hegel a ética nunca é individual, mas
diretamente vinculada aos interesses do Estado e a supremacia Divina, para
Nietzsche a ética é sempre individual, próprio nos espíritos livres e dissociados
do rebanho formado pelo cristianismo.
Se para Hegel o homem somente é livre através do Estado e de sua razão
histórica, Nietzsche ataca todo o poder instaurado (político, religioso,
social) em detrimento ao Super-homem, o homem capaz de subverter todos os
valores tidos como definitivos.
Para Hegel, o cristianismo deveria ser considerado como parte da
humanidade, perdendo o status transcendental que afastava dos homens os
preceitos de Jesus Cristo. Já Nietzsche afirmou a morte de Deus e defendeu a necessária
insurgência dos homens à moralidade cristã, que de acordo com ele, defendia os
fracos e prejudicava os fortes, numa moralidade que era contra a própria vida.
Ainda em Hegel, o exercício ético se daria mediante o equilíbrio
dialético entre os interesses privados e os coletivos, suprimindo a diferença
entre os homens sob o Estado. Já em Nietzsche, sua defesa ao dionisíaco suprime
qualquer similaridade entre os homens, afirmando a vida e a diferença
necessária e instintiva presente em cada um de nós. Sobre essa diferença entre os dois filósofos,
diz Gilles Deleuze:
Não existe compromisso possível entre Hegel e
Nietzsche. A filosofia de Nietzsche tem grande alcance polêmico; ela forma uma
antidialética absoluta, propõe-se denunciar todas as mistificações que
encontram na dialética um último refúgio. [8]
No entanto, há um ponto de
convergência nas teorias éticas dos dois filósofos alemães. Ambos parecem ter
seguido os passos de Heráclito de Éfeso, ao tratarem do choque entre os opostos
e do desenvolvimento humano a partir dessa perspectiva. Para Hegel, a dialética
entre os interesses privados e coletivos deveriam estar harmonizados, de forma
que o homem pudesse exercer sua ética social de maneira livre e não de maneira
imposta e opressora. Da mesma maneira, Nietzsche, o filósofo trágico, também
trata da tensão entre o apolíneo e o dionisíaco, do embate entre a
racionalidade e os instintos naturais do homem.
Logo, nota-se que embora tenham
tratado da concepção ética sob premissas distintas e que tenham desenvolvido
leituras díspares de Heráclito, ambos parecem ter visto no movimento a evolução
da sociedade e a autonomia do homem, aparentando ao menos um ponto ético em
comum: a idéia de que não há regra moral definitiva, tampouco concepção ética
que não passe pelo crivo da sociedade – seja para submeter-se a ela, seja para
propor sua transvaloração – mas mudando sempre.
5.
Conclusão
– Contribuições para a compreensão das relações do mundo contemporâneo.
O homem é um ser moral que pauta sua conduta com base nas premissas
éticas previstas pela sociedade. No entanto, a sociedade muda e com ela, mudam os
ideais de moralidade previstos por cada agrupamento social. Ainda que se
defenda que os padrões morais sejam mais flexíveis que os éticos, que são tidos
como universais, menos regionais que os parâmetros morais, não há preceito
ético que seja absoluto em todas as sociedades. Até o direito à vida,
aparentemente um dogma ético indiscutível, encontra em algumas tribos a sua
concepção apartada dos conceitos éticos da sociedade dita civilizada.
Essa divergência entre pontos de vista e ao mesmo tempo, a necessidade do
homem ver-se protegido por um respaldo ético que paute o comportamento humano
para o bem da vida e da propriedade privada, encontra nos dois pensadores aqui
estudados, Hegel e Nietzsche, símbolos de dicotomia.
Embora ambos tenham em Heráclito um ponto de apoio para a filosofia moral
que formularam, eles divergem tacitamente quanto à dialética. Para Hegel, a
ética é um exercício de equilíbrio entre os interesses individuais e os
interesses dos cidadãos enquanto sob o crivo do Estado. Já para Nietzsche, o
Estado é a figura assujeitadora da massa, que impotente diante das regras
morais a ela impostas, vê sua humanidade esvair-se e com ela, sua vontade de
potência, intrínseca à natureza humana, também escapar por entre as mãos.
Assim, quaisquer filosofias morais que pretendam dar cabo da difícil
tarefa de regulamentar a convivência em sociedade, são úteis para a compreensão
do fenômeno social moderno. Contudo, havendo que escolher apenas um dos dois
modelos éticos para a análise das relações humanas no mundo contemporâneo,
escolheremos aqui Nietzsche.
Quando Nietzsche propõe uma ética dionisíaca, pautada nas paixões
humanas, no dizer sim à vida, na relação de força entre o mais forte e o mais
fraco, a sociedade cristã a entende como um atentado à boa convivência humana.
Contudo, tal análise pauta-se nos ideais cristãos que terminaram por separar,
talvez de maneira irreparável, as noções de corpo e alma. Com isso, entende-se
que os prazeres do corpo devem ser rechaçados em detrimento da alma, esta sim
capaz de promover a paz entre os homens e o seu encontro com o Ser transcendental.
Mas supondo que Deus seja uma invenção humana e não o contrário,
compreende-se o que Nietzsche postulou com sua transvaloração dos valores,
atestando estarem os valores todos entendidos de maneira equivocada, de forma
que os atuais valores cristãos impeçam a livre autonomia do homem para o
aproveitamento da vida – apenas esta vida – sem quaisquer possibilidades de
vida além-túmulo.
Hoje, os cristãos e não cristãos vivem acometidos pela culpa, pelo eterno
conflito entre os seus desejos mais primitivos e as convenções sociais que
impedem o seu livre gozo. Já nascemos pecadores e apenas com base em nosso
comportamento em vida, é que teremos alguma chance de perdão divino numa vida
futura, ao lado de Deus pai criador. Ou seja, o cristianismo invalida a vida humana
em prol de uma vida metafísica, sonhada, para além de nossas capacidades
terrenas. E se nos sujeitamos a tais limitações, é por nosso desejo humano,
demasiado humano, de sermos imortais.
Ao homem não basta o tanto que lhe cabe de vida física. Queremos mais,
queremos a eternidade. Em busca do ideal de eternidade, procriamos, estudamos,
escrevemos livros, nos relacionamos. Todas as nossas atitudes, ainda que
camufladas em caridade, subserviência a Deus ou moralidade cristã, nada mais
fazem do que garantir, hipoteticamente, nosso sucesso no além-túmulo. Mas se ao
contrário, fôssemos capazes de transvalorar esses conceitos cristãos e
retomarmos as rédeas de nossas vidas, talvez enxergássemos que nossos desejos
precisam ser satisfeitos agora, nessa vida, no alcance de nossa vida humana.
Tal transvaloração em nada mudaria o cenário que já vemos em exercício
humano, apenas afastaríamos a culpa de nossas orações noturnas, que deixariam
de existir. A sociedade, por mais que negue, é nietzschiana. O homem, movido
por seus impulsos animais, é nietzschiano. Essa afirmação pode ser constatada
nas relações de mercado (pode mais quem consome mais – consome mais quem estuda
mais – quem estuda mais, ganha mais – quem ganha mais consome mais...). Assim,
o nosso assumir dionisíaco apenas faria com que nos sentíssemos humanos,
animais humanos que somos. Afastaria de nós a exigência de sermos o que não
seremos nunca, pois somos animais, simples animais, ainda que racionais.
Na lei da selva ou na lei da cidade, sobrevivem apenas os mais fortes.
Quaisquer noções de caridade, bondade e fraternidade, nada mais são do que
máscaras que tentam sobrepujar essa lei animal. Estendemos a mão a um mendigo
na rua, não pensando na vida daquele indivíduo excluído da sociedade. Se o
fazemos, é pensando em nossa própria sobrevivência, como o fazem todos os
animais. Estendemos a mão para que possamos dormir melhor, para que nos
sintamos comungando com um Deus que não existe, cujas promessas nunca serão
cumpridas – e se o forem, é no além-túmulo não comprovado, hipotético, apenas
sonhado.
Por este motivo, a leitura nietzschiana da sociedade apenas faria com que
nos despíssemos dos falsos pudores que a todos assola. Não mudariam as relações
entre os indivíduos, simplesmente porque as relação já se dão na lei do mais
forte, deste indivíduo que procura vencer a corda estendida entre o homem e o
animal. Como fez Maquiavel em O Príncipe, deixaríamos de supor como a vida
poderia ser vivida por um prisma da ética cristã, que é antinatural e
passaríamos a vivê-la como a vida de fato se apresenta aos bichos humanos que
somos: o mais forte em detrimento do mais fraco.
Se este é o modelo ideal de sociedade ou a maneira mais justa de
convivência entre os homens, é uma questão para outra reflexão. No entanto, seríamos
mais sinceros com relação à nossa própria existência, com o histórico de luta
por sobrevivência ao qual estamos todos submetidos. Vivemos em estado de guerra
e uma leitura nietzschiana da sociedade nos ajudaria a compreender que não
precisamos nos envergonhar disso. Somos humanos, demasiado humanos, e a
humanidade requer força, coragem e a aceitação do enfrentamento do trágico, que
não pode e nem deve ser sublimado da existência humana. Sendo possível a
transvaloração de todos os valores, manteríamos a sociedade tal qual ela se
configura, haja vista sermos animais. Mas a noção de culpa por essa condição
seria extinta, possibilitando ao homem o pleno exercício de sua humanidade,
exercício em vida, que nada esperaria de ilusórias congratulações no mundo de
lá.
6.
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[2]
NIETZSCHE apud GIACÓIA. O Platão de
Nietzsche. O Nietzsche de Platão. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/gen/pdf/cn_03_02.pdf
[3]
NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da
Moral. Pág. 4. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/3623204/Friedrich-Nietzsche-Genealogia-da-Moral-ptbr
[4]CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Ed. Ática, São
Paulo, 2000. Disponível em: http://docs.thinkfree.com/docs/view.php?dsn=567651
[5] Idem
[6]HEGEL, Geord W.
Friedrich. A Razão na História: Uma
Introdução Geral à Filosofia da História. Ed. Centauro, São Paulo, 2004.
Disponível em: http://www.deboraludwig.com.br/arquivos/hegel_razao_na_historia.pdf
[7] HEGEL, Geord W. Friedrich. A Razão na História: Uma
Introdução Geral à Filosofia da História. Ed. Centauro, São Paulo, 2004.
Disponível em: http://www.deboraludwig.com.br/arquivos/hegel_razao_na_historia.pdf
[8] DELEUZE apud MARTON. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D21_Nietzsche_e_Hegel_leitores_de_Heraclito.pdf
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