quinta-feira, 3 de maio de 2012

FÓRUM II DE ÉTICA II

Até que ponto existem continuidades e rupturas entre a ética cartesiana e o pensamento ético kantiano.







A ÉTICA CARTESIANA

O filósofo René Descartes é considerado o pai da filosofia moderna e um dos mais importantes pensadores de toda a História. Com relação à moral, objeto deste fórum, não é possível observarmos no conjunto de suas obras uma sistematização sobre o tema. No entanto, é possível identificarmos através de seus discursos e máximas, o seu legado ético, que visa estabelecer padrões de comportamento que permitam aproximar os homens do que considerava ser a verdadeira virtude. 

Especificamente sobre a ética, na obra Discurso do Método, o filósofo faz referência à morale par provision, na maioria das vezes traduzida como moral provisória. No entanto, o termo também pode ser entendido como moral de provisão, o que termina por conceber uma visão diferente de uma moral apenas provisória, suplente. Sobre a dissonância entre moral provisória e moral de provisão, nos diz Alessandro Pimenta:

"É preciso, neste momento, salientar que Descartes não utiliza a palavra provisoire. Encontramos, no Discurso, a expressão morale par provision, e é esta expressão que temos de 
explicar, a fim de a situarmos na compreensão da moralidade no sistema cartesiano. Marques observa, a respeito da expressão morale par provision, que o acento não deve ser dado ao caráter provisório, deve, antes, ser salientada a palavra provisão, a qual devemos entender como approvisionement (MARQUES, 1993, p. 110). Lembremos que Descartes fala que é preciso fazer uma provisão de materiais, ou melhor, acumular provisões para construirmos uma casa (DESCARTES, 1963d, 591). Gilson mostra a equivalência dos termos par provision e en attendant. Essa posição de Gilson é embasada a partir da leitura do texto em latim, no qual nos é apresentada a expressão ad tempus (GILSON, 1967, p. 230). Todas estas expressões significam uma atitude de espera enquanto não se obtêm máximas mais certas. A moral, tal como é apresentada no Discurso do Método, é necessária para que o homem não hesite em agir, enquanto não se tem um juízo claro e distinto de como conduzir as ações."
Disponível em: < http://www.gamaon.com.br/pdf/vol1/alessandro-artigo.pdf >

Entenderemos, portanto, a moral cartesiana como de provisão, como um apanhado de medidas práticas para o abastecimento do homem, enquanto este ainda não tivesse encontrado respostas para as quais não houvesse refutação. Essa concepção da ética faz alusão à maneira como devemos compreender o Discurso do Método - um tratado pessoal, que não visa ensinar aos leitores os métodos empregados pelo autor para o conhecimento da verdade, e sim, a descrição dos mecanismos utilizados para tanto: a demolição de todas as certezas e a dúvida permanente. 
Assim, na terceira parte do Discurso, Descartes anuncia que enquanto o processo de demolição de suas certezas estiver sendo realizado, ele conceberá uma moralidade de provisão, capaz de ajudá-lo a tomar decisões:

"AFINAL, COMO não é suficiente, antes de dar início à reconstrução da casa onde residimos, demoli-la, ou munir-nos de materiais e contratar arquitetos, ou habilitar-nos na arquitetura, nem, além disso, termos efetuado com esmero o seu projeto, é preciso também havermos providenciado outra onde possamos nos acomodar confortavelmente ao longo do tempo em que nela se trabalha. Da mesma maneira, para não hesitar em minhas ações, enquanto a razão me obrigasse a fazê-lo, em meus juízos, e a fim de continuar a viver desde então de maneira mais feliz possível, concebi para mim mesmo uma moral provisória, que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos anunciar." 
Disponível em: < http://www.fae.edu/pdf/biblioteca/O Discurso do metodo.pdf >

Assim, são as três máximas morais: o conformismo social e religioso; a prudência para suprimir a imperfeição dos juízos e a mudança dos próprios desejos, procurando vencer a si mesmo:

O CONFORMISMO SOCIAL E RELIGIOSO:
"A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, mantendo-me na religião na qual Deus me concedera a graça de ser instruído a partir da infância, e conduzindo-me, em tudo o mais, de acordo com as opiniões mais moderadas e mais distantes do excesso, que fossem comumente aceitas pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de conviver." 
(DESCARTES, apud PIMENTA).

Observamos, na primeira máxima, a ética racional cartesiana. Por suspender o juízo até a edificação de uma nova compreensão sobre a realidade, Descartes é amparado pelas opiniões mais moderadas, mantendo o rigor na obediência às leis e a Deus, cunhando uma moral tradicionalista e de embasamento racional - erraria menos se mantivesse a postura mais próxima aos dos moderados, orientando-se pela razão.

A PRUDÊNCIA PARA SUPRIMIR A IMPERFEIÇÃO DOS JUÍZOS:

"Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e decidido possível em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse me decidido a tanto."
(DESCARTES, apud PIMENTA).

Esta máxima parece nos dizer que devemos seguir com firmeza o caminho que escolhermos, ainda que não tenhamos certeza absoluta disso, "pois, por este meio, se não vão exatamente aonde desejam, ao menos chegarão no fim a alguma parte". Assim, a segunda regra moral de Descartes aponta para a necessidade da ação, da impossibilidade de o homem permanecer indeciso diante de uma decisão e que, portanto, caberia ao homem a resolução por um caminho específico, já que chegar a um lugar não pretendido seria melhor do que não chegar a lugar algum, restando como vítima e presa da indecisão constante.

MUDANÇA DOS PRÓPRIOS DESEJOS E NÃO DO MUNDO, PROCURANDO VENCER A SI MESMO:

"Minha terceira era de procurar sempre antes vencer a mim mesmo do que ao destino, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo; e, em geral, a de habituar-me a acreditar que nada existe que esteja completamente em nosso poder, salvo os nossos pensamentos, de maneira que, após termos feito o melhor possível no que se refere às coisas que nos são exteriores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível."
(DESCARTES, apud PIMENTA)

A terceira regra moral cartesiana tem clara influência estóica, onde o homem deve sujeitar suas paixões à ordem do mundo, mudando seus desejos de acordo com o que lhe é ofertado. Nisso, vemos que para Descartes, não é o mundo que deve ser adaptado aos impulsos humanos e sim que os impulsos humanos devem ser direcionados de acordo com a ordem do mundo vigente, já que não temos nenhum controle sobre o que nos é externo e tão somente aos nossos pensamentos - estes sim, passíveis de mudanças.

Com isso, podemos afirmar que as regras morais cartesianas são instrumentos de prudência, normas que orientam o âmbito das decisões humanas. Vemos também, o controle do desejo como norma moral, de forma que a simples vontade do homem não lhe sirva como única norteadora da ação, fazendo com o que o homem busque somente o que está ao seu alcance, contentando-se consigo mesmo e com o mundo.

Trata-se de uma moral racional e que não é provisória apenas porque espera um método (já articulado por ele), mas que aguarda a aplicação da inteligência sobre a conduta, da especulação pelo pensamento sobre a realidade. De acordo com Descartes:

"Quais os conteúdos verdadeiros fundamentais? O primeiro é que existe um Deus, criador de decretos infalíveis. A segunda coisa a conhecer é a natureza da alma, mais nobre que a do corpo, o que nos desprende do temor da morte e destaca das coisas do mundo. A terceira verdade é de que a extensão do universo ajuda a pensar que os céus são feitos para o serviço da terra, e esta para servir o homem. Enfim, embora cada indivíduo tenha interesses distintos, não subsistimos isolados; somo uma das partes do universo, e mais particularmente uma das partes da terra, do estado, da sociedade e da família, a que nos ligamos por moradas, juramentos, e nascimento. Como só Deus sabe tudo, contentemo-nos com o conhecimento possível, mas exijamos o infinito aperfeiçoamento moral.
(DESCARTES, apud diversos autores). Disponível: < http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/PED.pdf >

Em suma, a ética cartesiana consiste na obediência absoluta a Deus e aos preceitos sociais vigentes até o estabelecimento de uma verdade inquestionável, no conformismo com a inevitabilidade dos acontecimentos e na superação da irresolução do homem frente à necessidade de decidir.

A ÉTICA KANTIANA
Ao contrário de Descartes e de todo o método por ele fundado, os empiristas que o sucederam viam na experiência, e não mais na racionalidade, o caminho para o conhecimento da verdade. Superando a dicotomia entre empiristas e racionalistas, o filósofo alemão Immanuel Kant formulou suas próprias teorias, aliando o conhecimento a priori e a posteriori.

No que se refere à Ética, Kant afirma que por natureza os homens são ambiciosos e egoístas, o que exige o controle de tais impulsos para a conquista do indivíduo moral e autônomo. Assim, Kant postula o Imperativo Categórico, que não permite concessões e consiste em ordens morais incondicionais, baseadas em máximas. De acordo com André Vinicius Senra:

"Ao analisarmos a ética de Kant, constatamos que trata-se de uma teoria sobre a ação humana que pretende estabelecer o que é certo de modo universal e a priori. Chamamos a teoria da ação de Kant de metaética, pois, se a ética, tradicionalmente, já possui um sentido mais teórico do que prático, a metaética kantiana busca fundamentar as razões éticas em um sentido apriorista. Nesta linha de abordagem, a ideia da metaética não trata ‘do que é’ e ‘do por que é’, mas sobretudo se refere ao que Deve Ser. Portanto, esta metaética aprofunda mais ainda a noção de ética. A ideia da ética se caracteriza como instância teórica que estabelece uma legislação para a conduta humana. No entanto, isto não é o bastante para Kant, pois, além de reconhecer a existência da regra universal e a priori, para ser ético o indivíduo deve querer, por vontade própria, agir em conformidade com este universal ético. Kant chama esta atitude do sujeito ético de ação autônoma, pois, ainda que seja uma ação determinada por uma regra, trata-se, na verdade, do exercício de liberdade autônoma (escolha racional e consciente). A autonomia trata de uma escolha do sujeito em reconhecer a razão que sustenta o ato correto."
Disponível em: < http://www.debatesculturais.com.br/etica-kantiana-a-constituicao-para-uma-metaetica-ou-teoria-racional-sobre-a-importancia-do-dever/ >

Para tanto, Kant postula as três principais regras éticas:

AGE COMO SE A MÁXIMA DE TUA AÇÃO DEVESSE SER ERIGIDA POR TUA VONTADE EM LEI UNIVERSAL DA NATUREZA.

A primeira regra moral de Kant aponta para a universalidade da moral, de uma lei inquestionável e aplicada a todos, sem distinção ou exceções. Com isso, Kant submete a vontade humana a uma lei universal.

AGE DE TAL MANEIRA QUE TRATES A HUMANIDADE, TANTO NA TUA PESSOA COMO NA PESSOA DE OUTREM, SEMPRE COMO UM FIM E NUNCA COMO UM MEIO.
De acordo com Kant, as pessoas nunca devem ser tratadas como meios de conseguir o que se quer ou como instrumentos para o alcance de objetivos, o que termina por afirmar a dignidade humana.

AGE COMO SE A MÁXIMA DE TUA AÇÃO DEVESSE SERVIR DE LEI UNIVERSAL PARA TODOS OS SERES RACIONAIS.

A vontade que age por dever estabelece uma sociedade de seres morais, porque racionais e dotados de livre arbítrio para o exercício da moralidade.

Com isso, podemos afirmar que a ética kantiana não é pautada pelos desejos individuais, mas nos deveres absolutos e imputados a todos os indivíduos. Assim, para decidir agir sobre determinada situação, o sujeito deve verificar se a ação não fere às três regras morais, ou seja, a ação deverá ser passível de aplicação universal, não poderá enganar a si mesmo e ao outro, bem como deverá ser uma ação baseada na racionalidade.

CONCLUSÃO

Como pôde ser observado, Kant dá continuidade à Ética cartesiana quando se pauta na racionalidade para as escolhas morais dos homens. Contudo, Descartes postulava que a razão seria suficiente para alcançar todo o conhecimento e, para tanto, desenvolveu um método que colocava em dúvida todas as certezas, para que através do pensamento, pudesse emitir um juízo seguro sobre seus preceitos. Além disso, a ética cartesiana é metafísica, que consiste na idéia de que o homem saiba, de maneira inata, o que seja a verdade e essa verdade seria fornecida e norteada por Deus. 

Já Kant duvidava da presunção humana de adquirir todo o conhecimento através do pensamento, impondo limites à razão. Com isso, o que a razão não alcançaria, seria alcançado pelo exercício da moral: a liberdade e a felicidade do homem. 

Assim, se a ética cartesiana é fundada em Deus, a de Kant é fundamentada no Dever. Ou seja, Kant chama de razão moral as normas que regem o agir humano, razão esta que possibilitaria aos homens o conhecimento do que é transcendental (Deus, vida, liberdade, imortalidade) e não através do racionalismo puro, como defendia Descartes. Com isso, ao contrário de Descartes que acreditava ser possível atestar a existência de Deus através de provas racionais, Kant vê no próprio agir ético a sua existência, sendo Deus o legislador das normais que deveriam ser seguidas universalmente.

FONTE DE PESQUISA

CHAUÍ, Marilena. A Ética de Kant. 

Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/7611234/A-Etica-de-Kant-Marilena-Chaui

SENRA, André Vinicius. Ética Kantiana: A Constituição para uma Metaética ou Teoria Racional sobre a Importância do Dever. 

Disponível em: http://www.debatesculturais.com.br/etica-kantiana-a-constituicao-para-uma-metaetica-ou-teoria-racional-sobre-a-importancia-do-dever/ 

LINO, Maria Helena. Introdução a Ética em Pesquisa. 

Disponível em: http://www.ghente.org/etica/index.htm 

FIGLIE, Priscila. Empirismo Inglês X Racionalismo Cartesiano. 

Disponível em: http://www.webartigos.com/artigos/empirismo-ingles-x-racionalismo-cartesiano/25470/ 

PALACIO, Héctor Hugo. O método cartesiano.

Disponível em: http://www.dialogocomosfilosofos.com.br/category/pensamento/ 

PIMENTA, Alessandro. Uma morale par provision, uma moral provisória? 

Disponível em: http://www.gamaon.com.br/pdf/vol1/alessandro-artigo.pdf 

VIEIRA, Rodrigo Vides. O Despertar da Crítica: do Racionalismo Cartesiano ao criticismo Kantiano. Disponível em: http://www.webartigos.com/artigos/o-despertar-da-critica-do-racionalismo-cartesiano-ao-criticismo-kantiano/20104/ 

GRESPAN, Jorge. O esclarecimento: ruptura ou tradição. 

Disponível em: http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S0034-83091997000100007&script=sci_arttext 

SILVA, Regina da. Kant e os paralogismos da Razão Pura. 

Disponível em:  http://www.usjt.br/biblioteca/mono_disser/mono_diss/066.pdf 

DESCARTES, René. Discurso do Método. 

Disponível em: http://www.fae.edu/pdf/biblioteca/O Discurso do metodo.pdf 

Filosofia Cartesiana da Natureza, Alma e Moral. 

Disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/Megahist-filos/Descartes/3686y250.html 

Moral. Disponível em: http://afilosofia.no.sapo.pt/12KantIntrod.htm 

A Ética de Kant. Disponível em: http://filosofandonaescola.blogspot.com.br/2009/08/etica.html 

Imperativo Categórico, o que é. 

Disponível em: http://topicospoliticos.blogspot.com.br/2004/10/imperativo-categrico-o-que.html 

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