Caro professor e queridos colegas,
Vou abrir minha participação nesse fórum
com um trecho de Nietzsche, em O Livro do Filósofo:
“Todos os instintos ligados ao prazer e ao
desprazer – não pode aí haver um instinto de verdade, isto é, de uma verdade
completamente sem conseqüências, pura, sem emoção; porque aí cessaria prazer e
desprazer e não há instinto que não pressinta uma alegria em sua satisfação. A
alegria de pensar não demonstra um desejo de verdade. A alegria de todas as
percepções sensíveis consiste no fato de terem sido conseguidos por meio de
raciocínios. O homem nada sempre até esse ponto num oceano de alegria. Em que
medida, contudo, o silogismo, a operação lógica preparam a alegria?”
(Fragmento 181, do livro O Livro do
Filósofo, página 97. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, Editora
Escala).
Este livro é, na verdade, um apanhado de
pensamentos soltos, incompletos. Nietzsche morreu sem dar cabo de sua conclusão
e eu o considero quase como um diário, um apanhado de pensamentos que o alemão
poderia um dia desenvolver – não fosse a sífilis. Por isso, o filósofo não
conclui o raciocínio e deixa a pergunta sem resposta: como as operações lógicas
poderiam nos preparar para a alegria do pensamento, se a alegria do pensamento,
de acordo com ele, não consiste no desejo de verdade?
Para pensarmos a questão, devemos nos ater
às condições de validade e verdade aplicadas à Lógica: a validade de um
argumento depende exclusivamente da relação entre as suas premissas e a
conclusão delas derivada. Assim, a validade de um argumento deve ser
considerada de acordo com sua estrutura e não de acordo com o conteúdo do
discurso anunciado.
Temos, no entanto, dois tipos de
argumentos: os dedutivos e os indutivos. Nos argumentos dedutivos, a conclusão
é amparada de forma definitiva pelas premissas, havendo, portanto, uma
necessidade lógica nessa relação. Assim, um argumento dedutivo em que as
premissas não sustentam a conclusão, é um argumento inválido.
Contudo, temos também os argumentos
indutivos, onde a conclusão é afirmada pelas premissas somente dentro de um
campo de possibilidade, não atestando definitivamente sua conclusão. Logo, quando
falamos em validade dos argumentos, só podemos nos referir aos argumentos
dedutivos, sendo certo que os indutivos podem ser considerados apenas com
probabilidades, maiores ou menores de validade, em relação às conclusões e suas
premissas.
Com isso, podemos afirmar que quando as
premissas são verdadeiras, é impossível que sua conclusão seja falsa. No
entanto (Filosofia sempre tem esse “no entanto” que termina complicado as
coisas), é possível que as premissas sejam falsas, dentro de uma estrutura válida,
mas com uma conclusão verdadeira. Parece complicado. E é! (pelo menos para
mim). Para tentar entender como isso ocorre, vou recorrer à citação de um site
sobre Lógica, onde o autor se apresenta apenas como Vinícius:
“é possível termos premissas falsas e conclusão verdadeira em um
argumento válido. Isso mostra porque ao tentar rebater um argumento devemos
primeiramente verificar as premissas e não a conclusão. Para evitar a confusão,
devemos deixar claro: em um argumento válido, se as premissas são verdadeiras a conclusão não pode
ser falsa; por outro lado, se as premissas forem falsas, a conclusão pode ser verdadeira ou falsa! A única
garantia que a validade nos dá é no caso de premissas verdadeiras. De premissas
falsas pode-se concluir qualquer coisa, não há controle, digamos assim.”
Ou seja, o conceito de verdade pode ser aplicado
coloquialmente, mas não em relação à conclusão dos argumentos. Para análise do
raciocínio e seus argumentos, poderemos considerá-los, de acordo com sua
estrutura, apenas como válidos ou não válidos. A sua verdade, no entanto,
dependerá da concordância da afirmação da proposição em comparação com a
realidade ou do posicionamento moral – análises essas, que não compete ao
estudo de validade da Lógica.
Então se não podemos considerar os
argumentos como verdadeiros, mas tão somente válidos ou inválidos, como validar
o argumento? Simples: de acordo com a estrutura desenvolvida no raciocínio.
Para que consideremos qualquer argumento válido, basta que enxerguemos, oculta
nas premissas, a conclusão ao qual se pretende chegar. Por exemplo:
Todos os gatos bebem leite
Mingau é um gato
Logo, ...
Este argumento é válido. Mas por que é
válido? Afirmamos que é válido porque a conclusão é aparente já nas premissas.
É lógico que Mingau bebe leite, isso fica evidenciado já nas premissas. E essa
é a regra para um raciocínio válido: a conclusão é inteiramente amparada pelas
premissas – que a sustenta e valida.
Mas como disse acima, há ainda os
argumentos que são válidos apesar da conclusão falsa:
Todos os gatos bebem leite
As baleias bebem leite
Logo, os gatos são baleias.
Neste caso, a conclusão é falsa (sabemos
claramente que um gato não é uma baleia) mas é um argumento válido – embora não
seja um raciocínio verdadeiro. Assim, é certo afirmar que só sabemos que o
argumento não é verdadeiro, pois conhecemos a natureza dos mamíferos e embora
gato e baleia bebam leite, sabemos, pelo contato com a realidade, que trata-se
de animais diferentes. Contudo, é válido o argumento: a conclusão é amparada
pelas premissas e se não conhecêssemos gatos e baleias, poderíamos ser levados
a acreditar que o argumento, além de válido, poderia ser verdadeiro. No
“logiquês”: nem todos os argumentos com forma válida
têm premissas e conclusão verdadeiras, ao passo que todos os argumentos que têm
premissas e conclusão verdadeiras têm forma válida.
E eis o perigo da Lógica: sermos conduzidos
a acreditar em conclusões falsas, apesar das premissas verdadeiras. Ou seja, um
indivíduo pode ser levado a crer em determinada idéia apenas em razão de sua
estrutura lógica. Em outras palavras: podemos enganar uma pessoa com uma
conclusão que não é verdadeira, utilizando para isso de premissas válidas. Me
parece ser o caso do exemplo de argumento social do anexo:
A primeira questão é o argumento dos
defensores do aborto. De acordo com eles (e conforme “tradução” do professor):
“As
mulheres pobres e ricas fazem aborto mesmo que este seja ilegal.
As mulheres pobres fazem aborto em piores condições que as mulheres ricas.
Portanto, o aborto deve ser legalizado, pois desse modo todas farão aborto nas mesmas condições.”
As mulheres pobres fazem aborto em piores condições que as mulheres ricas.
Portanto, o aborto deve ser legalizado, pois desse modo todas farão aborto nas mesmas condições.”
Partindo dessa idéia, o argumento não
apenas é válido, como também verdadeiro. É válido pois as premissas dão suporte
à conclusão, e é verdadeiro a partir da MINHA concepção de mundo (podendo ser
um argumento não verdadeiro para outro colega que condene moralmente o aborto).
Assim, embora concordemos ou não com a sua verdade, todos devemos considerar
válido o argumento.
No entanto, o autor do texto faz uma
analogia desse argumento com a questão da pedofilia:
“Os pedófilos
praticam a pedofilia mesmo que esta seja ilegal.
Os pedófilos pobres praticam a pedofilia em piores condições que os pedófilos ricos.
Portanto, devemos legalizar a pedofilia para que pedófilos ricos e pobres a pratiquem nas mesmas condições.”
Os pedófilos pobres praticam a pedofilia em piores condições que os pedófilos ricos.
Portanto, devemos legalizar a pedofilia para que pedófilos ricos e pobres a pratiquem nas mesmas condições.”
Mais uma vez
o argumento é válido: as premissas sustentam a conclusão. No entanto, para mim,
a conclusão é falsa. E é falsa porque discordo moralmente da pedofilia, fui
criada em uma cultura que acredita que somente por volta dezesseis, dezessete
anos, a pessoa tem condições físicas e psicológicas para desenvolver-se
sexualmente. Contudo, se eu tivesse sido criada em uma cultura (como as de
antigamente) onde meninas de onze anos era aliciadas por seus pais e dadas em
casamento a promissores senhores, então talvez o argumento, além de logicamente
válido, fosse para mim moralmente verdadeiro.
Ou seja, podemos analisar a validade dos
argumentos a partir da estrutura, bem como pensar a verdade a partir do
enunciado das proposições. Mas nunca podemos nos confundir procurando a verdade
do argumento ou a validade das proposições. Em outras palavras: a validade é
característica do raciocínio, do argumento, enquanto a verdade é característica
das proposições (ou premissas) que o compõem.
De acordo com o filósofo Álvaro Nunes:
“Uma outra confusão comum
consiste em pensar que os argumentos são verdadeiros. Os argumentos não são
verdadeiros nem podem sê-lo. Tudo o que podemos dizer é que a conclusão de um
argumento é verdadeira ou falsa. Isto resulta do facto de a conclusão de um
argumento ser uma proposição e, como todas as proposições, poder ser verdadeira
ou falsa. A verdade e a falsidade são propriedades das proposições ― é mesmo
esta propriedade que as distingue do significado de outras frases como as
perguntas ou as exclamações ―, mas os argumentos não são proposições. São
conjuntos de proposições relacionadas de modo tal que aquelas que têm a função
de premissas, implicam ou são julgadas a implicar a conclusão. Isto significa
que a relação entre as diferentes proposições de um argumento determinam se ele
tem forma válida ou inválida, mas não que seja verdadeiro ou falso, uma vez
que, como já dissemos, essa é uma propriedade das proposições e não dos
argumentos.”
(Disponível em: < http://www.filedu.com/ensinodafilosofia.html
>)
Com isso, entendo que o argumento social
apresentado é válido, embora a verdade de sua conclusão só possa ser atestada
num sentido individual, não regido pelos métodos propostos por Aristóteles para
distinguir um raciocínio correto do incorreto. Logicamente falando, o argumento
é válido. No argumento do aborto, para mim (a interlocutora com o texto), é
válido é verdadeiro. No argumento da pedofilia, também partindo do meu ponto de
vista, é válido e de conclusão falsa. Ou seja: podemos atestar universalmente a
validade de um argumento, mas nunca sua verdade.
Para finalizar, retomo à pergunta deixada
por Nietzsche: como a operação lógica pode nos preparar para a alegria do
pensamento? Arrisco aqui a dizer que a lógica pode preparar o terreno para a
aventura que é saber, de antemão, que a verdade não pode ser atestada enquanto
forma, estrutura. Se a verdade depende do interlocutor do argumento e se não pode
ser estabelecida uma regra estrutural para a sua descoberta, cabe aos
indivíduos analisarem os raciocínios e estabelecerem uma relação entre o
conhecimento e a linguagem. Atestar a verdade, tanto para Nietzsche quanto para
a Lógica, é tarefa que não lhes cabe. Assim começa a alegria do pensamento.
Abraços,
Natachy
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