Introdução
“Demais, os Estados rapidamente surgidos, como todas as
outras coisas da natureza que nascem e crescem depressa, não podem ter raízes e
as aderências necessárias para a sua consolidação. Extingui-los-á a primeira
borrasca, a menos que, como se disse acima, os seus fundadores sejam tão
virtuosos [virtuosi], que saibam imediatamente preparar-se para conservar o que
a fortuna lhes concedeu e lancem depois alicerces idênticos aos que os demais
príncipes construíram antes de tal se tornarem.”
Nicolau Maquiavel[1]
Maquiavel nasceu em
Florença, na Itália, em 1469. Por volta de 1498 tornou-se secretário da Segunda
Chancelaria, onde por mais de quatorze anos viajou entre diversas cidades em
missões diplomáticas. Contudo, com o retorno dos Médici ao poder em 1512, Maquiavel
foi exonerado do cargo e um ano depois preso, torturado e multado sob a
acusação de tramar contra o governo.
Neste período, a Itália
era uma nação fragmentada em diversos Estados que formavam um território em
constante conflito, muito deles derivados pela incompetência política de seus
governantes. Com o desejo de retornar à vida pública e incentivado pela desestabilização
da região cujas fronteiras de seus Estados viviam em perigo de guerra eminente,
Maquiavel escreveu um livro de instruções ao príncipe Lorenzo, chefe da família
Médici e sucessor do príncipe Juliano. Em O Príncipe, livro de gênero muito popular
na época, Maquiavel aconselha de forma prática sobre como Lorenzo deveria agir
para tornar-se um conquistador e com isso, conseguir unificar a Itália sob seu
domínio soberano.
Nesta obra, o príncipe é
descrito como alguém capaz de conquistar territórios, exercer soberania e
manter o poder político. Para isso, ele não poderia ficar restrito à moralidade
vigente e aos costumes da época. Maquiavel via a humanidade de maneira
pessimista, fria e cruel, entendendo os homens como essencialmente ruins,
mentirosos e trapaceiros. Por este motivo, não caberia ao príncipe ser
diferente dos homens a quem governava, sendo a ele concedida a premissa de
mentir, ser corrupto e não precisar manter a palavra dada, se disso dependesse
a manutenção de seu poder. Para Maquiavel, os fins justificavam os meios e não
havia, para este pensador, fim maior que a unificação da frágil Itália, na
época tão chafurdada em um ambiente de caos e instabilidade.
Sobre o Conceito de Virtú e Fortuna
Dois
grandes conceitos permeiam a obra O Príncipe: Virtú e Fortuna. Para ampará-los,
Maquiavel recorre à mitologia clássica em oposição ao cristianismo que começava
a ser discutido na Itália Renascentista.
Com o
cristianismo, o conceito sobre a fortuna tornou-se pejorativo, símbolo de busca
indiscriminada e vã pelo poder. Para os cristãos, a fortuna deixava de ser
fonte de felicidade, já que por seus preceitos, ao homem era dada a verdadeira
felicidade somente no além-mundo, de acordo com a moralidade exercida pelos indivíduos
na vida terrena. Sobre a maneira como os cristãos do período compreendiam o
conceito de fortuna, nos diz Maria Tereza Sadek:
Esta visão foi inteiramente derrotada com o triunfo do
cristianismo. A boa deusa, disposta a ser seduzida, foi substituída por um
“poder cego”, inabalável, fechado a qualquer influência, que distribui seus
bens de forma indiscriminada. A Fortuna não tem mais como símbolo a cornuscópia,
mas a roda do tempo, que gira indefinidamente sem que se possa descobrir o seu
movimento. Nessa visão, os bens valorizados no período clássico nada são. O
poder, a honra, a riqueza ou a glória não significam felicidade. Esta não se
realiza no mundo terreno. O destino é uma força da providência divina e o homem
sua vítima impotente.
Maquiavel
então subverte esta concepção cristã sobre a fortuna, dotando-a de
características clássicas, que consideravam a fortuna uma deusa que “possuía o
bens que todos os homens desejavam: a honra, a riqueza, a glória, o poder”
(SADEK). Mas se por um lado a Fortuna era a responsável por oferecer tantos
favores ao príncipe, Maquiavel afirma ser a virtú a responsável por atrair tais
favores e mantê-lo no poder. Assim, um homem dotado de virtú seria capaz de
seduzir a sorte, onde “a liberdade do homem é capaz de amortecer o suposto
poder incontrastável da Fortuna” (SADEK).
Desta
maneira, na obra de Maquiavel a Fortuna é considerada um instrumento de sorte,
que poderia ou não agraciar ao príncipe, de acordo com a virtú representada na
sua coragem e força em seduzi-la. No entanto, mais uma vez Maquiavel subverte o
conceito que era comum sobre a virtude. Na abordagem deste pensador, a virtú se
aproxima mais da concepção medieval de qualidade e habilidade pessoais, do que
na virtude religiosa.
Para
Maquiavel, a virtú é a destreza do governante em obter o sucesso pelos favores
da fortuna, alcançando com isso a glória e a manutenção do poder, sem que este
conceito seja relacionado à virtude religiosa que estabelecia a bondade como
âncora. Ao contrário, para Maquiavel, a virtú era a astúcia política, o segredo
da excelência e sucesso do príncipe:
Assim,
a qualidade exigida do príncipe que deseja se manter no poder é sobretudo a
sabedoria de agir conforme as circunstâncias. Devendo, contudo, aparentar
possuir as qualidades valorizadas pelos governados. O jogo entre a aparência e
a essência sobrepõem-se à distinção tradicional entre virtudes e vícios. A
virtú pública exige também os vícios, assim como exige o reenquadramento da
força. O agir virtuoso é um agir como homem e como animal. Resulta de uma
astuciosa combinação da virilidade e da natureza animal.
Maria
Tereza Sadek[3]
Com isso, Maquiavel em um único livro
altera toda a concepção de virtú e fortuna, tão comuns e incentivados na época.
A fortuna deixa de ser uma conquista egoísta, para tornar-se instrumento de
sorte. A virtú deixa de ser sinônimo de bondade para tornar-se astúcia e
destreza pessoal, sendo que somente com a junção de virtú e fortuna, um
príncipe seria capaz de manter-se no poder conquistado, podendo incorrer em
defeitos se isso fosse necessário para a manutenção de sua soberania, devendo,
para tanto, ser guiado pela necessidade e não pela moralidade vigente.
Inovações
do conceito de virtú para a política e a ética
O
Livro O Príncipe é considerado um dos maiores instrumentos da filosofia
política da História. Por tratar da política como ela se desenvolve de fato e
não como poderia desenvolver-se utopicamente, Maquiavel disseca a psicologia
das relações de poder e estabelece uma rigorosa segregação entre política e
religião.
Ao contrário do que era
estabelecido, Maquiavel considera que o poder não depende apenas do destino,
mas, sobretudo, da astúcia de governante em manter-se sob o comando de uma
nação que o respeitasse, temesse e, sendo possível, o amasse. Tal astúcia
representa uma inovação no pensamento político, outorgando ao homem a
responsabilidade por seu sucesso, através da junção das forças intelectuais e
animais presentes em cada indivíduo. Assim, ao príncipe não bastaria a força de
um leão para o domínio de um território, mas, sobretudo, a astúcia de uma
raposa para manter-se no controle, sabendo como agir, quando mentir e o que
deveria aparentar aos seus governados.
Desta maneira, Maquiavel inova ao
propor que a política possui uma ética própria, e não mais a mesma pregada pela
religião. Ele subverte os conceitos já mistificados de virtude, fortuna e
poder, e lança sobre eles um olhar crítico e prático, baseado em observações
concretas e desprovidas de fundamentalismos dogmáticos. Assim, não seria
necessário ao príncipe ser um homem bom, devoto, cumpridor de suas promessas ao
povo, pois tais características são próprias da virtude cristã, apartada da
ética política instruída por Maquiavel. Bastaria, portanto, que o príncipe se
guiasse pelas necessidades advindas de determinadas circunstâncias, tendo a
astúcia exigida para saber identificá-las e a sabedoria para agir em razão
delas.
Outra inovação de Maquiavel foi a de
atestar à fortuna apenas metade do sucesso de um príncipe, sendo a virtú a
responsável pela metade que o manteria no poder. Com isso, Maquiavel dilui a
crença no sucesso como predestinação e passa a encará-lo como um esforço árduo
e constante do homem que se dispõe a governar uma nação, caracterizando o
pensamento renascentista de outorgar ao homem e não aos poderes do destino, o
seu estabelecimento enquanto tal.
Com essas inovações, Maquiavel não
apenas consagrou-se como um dos maiores expoentes do pensamento renascentista,
como se tornou também um dos maiores filósofos políticos da História,
contribuindo para a análise de como a política funciona de fato, e não como
gostaríamos que ela funcionasse.
Conclusão:
Os fins justificam os meios
É célebre a frase de Maquiavel que
afirma que os fins justificam os meios. Tal afirmação é a responsável pelo tom
pejorativo com que o pensador é citado cotidianamente, até por quem nunca teve
acesso à sua obra. Assim, “maquiavélico” tornou-se ao longo da história
sinônimo de maldade, característica de pessoa traiçoeira, de quem vive a tramar
planos contra outrem.
No entanto, Maquiavel apenas alterou
o prisma pelo qual a moralidade era encarada, separando radicalmente a política
da religião. Para ele, o fim maior era
a unificação da Itália, o que justificaria quaisquer meios utilizados pelo
príncipe para alcançá-lo. Além disso, por considerar a humanidade
essencialmente pérfida, Maquiavel entendia que ao príncipe caberia também
sê-lo, se esta atitude acarretasse na ordem e na instauração de um Estado
estável. Ao contrário de pensadores que ao longo da História descreveram como a
política deveria ser realizada para o alcance de um Estado forte e provedor de
bem-estar aos seus governados, Maquiavel antecede uma característica do
Renascimento e parte para o plano concreto da política, descrevendo como se dão
as relações de poder e não como poderiam dar-se utopicamente. Assim, a partir
de um exame metódico da realidade e da história de governos passados, Maquiavel
conclui que caberia ao Príncipe construir um Estado que resolvesse o ciclo
inevitável de caos e instabilidade, onde os fins justificariam os meios
utilizados, tornando-se o príncipe não um ditador, mas o fundador de um Estado unificado,
sendo ele o agenciador da transição de uma nação em constante conflito:
O
príncipe não é um ditador; é, mais propriamente, um fundador do Estado, um
agente da transição numa fase em que a nação se acha ameaçada de decomposição.
Quando, ao contrário, a sociedade já encontrou formas de equilíbrio, o poder
político cumpriu sua função regeneradora e “educadora”, ela está preparada para
a República. Neste regime, que por vezes o pensador florentino chama de
liberdade, o povo é virtuoso, as instituições são estáveis e contemplam a
dinâmica das relações sociais. Os conflitos são fontes de vigor, sinal de uma
cidadania ativa, e portanto são desejáveis.
Maria
Tereza Sadek[4]
É importante ressaltar, por isso, que
os conselhos de Maquiavel são voltados a um plano político que prevê o
Principado como fonte de poder, tendo ainda, a República como alternativa
política. No entanto, para este pensador, a nação só estaria plenamente
preparada para este modelo de governo, quando um homem forte conseguisse
unificar os diversos territórios em conflito e tivesse cumprido seu papel de
regenerador da sociedade.
Por fim, há correntes dentro da
Filosofia que afirmam ser O Príncipe um livro satírico, que fizesse com que os
governados constatassem a natureza dos príncipes e rejeitassem tal domínio. Por
outro lado, há os que afirmam que sua obra tinha o intuito apenas de agraciar a
família Médici, como forma de retornar ao cargo público ao qual havia sido
exonerado. Com isso, é um desafio discernir na obra de Maquiavel quais eram suas
reais crenças e quais seriam apenas o modelo utilizado para satirizar ou
agraciar os governantes. Contudo, independentemente das correntes que estudam e
defendam tais concepções, O Príncipe é, de toda forma, um livro intrigante,
feito de instrumento político por ditadores e republicanos, e obra
indispensável aos interessados na descrição analítica dos mecanismos do poder.
Fonte de
Pesquisa
[1] MAQUIAVEL,
Nicolau. O Príncipe. Disponível em: http://www.ceap.br/artigos/ART13102011193159.pdf.
[2] SADEK, Maria
Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem
fortuna, o intelectual de virtú. Disponível em: http://www.ceap.br/artigos/ART13102011193159.pdf.
[3] SADEK, Maria
Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem
fortuna, o intelectual de virtú. Disponível em: http://www.ceap.br/artigos/ART13102011193159.pdf.
[4] SADEK, Maria
Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem
fortuna, o intelectual de virtú. Disponível em: http://www.ceap.br/artigos/ART13102011193159.pdf.
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