sábado, 28 de maio de 2011

A felicidade só existe como invenção.

Caro Nivaldo

Concordo com a reflexão sobre a busca de felicidade ser um lugar comum. Faz parte do bom senso (que não passa de senso comum) acreditar em ideais de felicidade e a eles aspirar, inspirados. E não concordo que a felicidade exista, como se a partir de uma somatória de condicionantes positivas, fosse possível classificar o que seria a tal felicidade – e com essa classificação, normatizar uma singularidade nos processos para alcançá-la. Neste modelo, a felicidade é um lugar, uma meta, um objetivo, um fim. Com ele, convencionam-se a moral, a ética, o amor, a religião, o poder. As tais dimensões.

A felicidade não existe e não existe porque antes de procurarmos ser felizes, lutamos para continuar a existir. Isso nos torna feliz: continuarmos vivos. Nenhuma alegria ou tristeza é maior, para o bicho, do que continuar a existir. Como disse Sartre, a existência precede a essência. O que julgamos por felicidade, penso eu, nada mais é do que o exercício de nosso “egoísmo” natural, do embate pela vitória do mais forte, da perpetuação de nossa espécie.

Se a dimensão biológica/natural do indivíduo fosse considerada, se aceitássemos que somos seres que nascemos, crescemos, na maioria das vezes reproduzimo-nos e depois, inevitavelmente morremos, viveríamos de maneira mais harmônica em sociedade. Mas não aceitamos nossa dimensão humana e afirmamos haver muitas outras dimensões, infinitas possibilidades a este ser racional, superior, buscador do algo a mais que foi o objeto do meu texto e que você comentou. Evidentemente que não refuto todas as dimensões deste homem, no entanto, defendo que nos agarramos a todas elas apenas para esquecermos de nossa efemeridade. Estamos provisoriamente sobrevivendo e a única maneira de subvertermos essa pouquidão de vida, é inventando outras. Inventando Deus. Inventando a religião. Fazendo filosofia. Fazendo amor. Inventando a felicidade. Tudo para nos mantermos vivos, para satisfazermos nosso desejo afirmando que somos seres humanos, somos melhores. Racionais, humanistas – a nós devem ser voltados todos os esforços e atenção. Deus nos inventando ou sendo por nós inventado, é condição variável e insignificante para a mesma constante: buscamos um algo a mais para iludir nossa própria noção de limite.

Com isso, podemos inverter a perspectiva de felicidade, tirando-a do contexto social em que é formulada. Não se trata, então, das concepções de felicidade que são inventadas e representadas pelas dimensões humanas em sociedade, e sim, a noção de felicidade por um prisma natural, biológico, existencial: a felicidade é o que mantém o indivíduo vivo, pois passa a ser atrelada às questões de necessidade deste homem para a sobrevivência física e não apenas social. Vou tentar exemplificar:

Pensando nas várias dimensões humanas, conforme proposto pelo Claretiano: uma delas, o Amor. Ora, será que alguém realmente acredita que o homem ama desinteressadamente? Quem ama, sabe que ama o outro pelo que este outro te representa, o que ele te acrescenta, nos benefícios desta relação para si próprio. Procuramos o outro não pelo prazer transcendental desta imagem que nos vendem de amor, porque o amor não existe, é dimensão inventada. Ou existe exatamente por isso. O amor é egoísmo e necessidade humana de sobrevivência: procuramos a proteção ou tormento; a realização ou a renúncia consentida; procuramos no outro o que acreditamos que nos falta ou que, na mesma medida, transborda solitário no convívio do outro. E assim digo que a felicidade não é sublime, é necessária, não tem existência ou alcançabilidade senão como idéia. E para escondermos nossa sabida submissão a esta necessidade biológica, poetizamos a espera. Desenhamos corações e suspiramos romanticamente. Uma bela maneira que nossa racionalidade criou para transformarmos uma necessidade biológica de reprodução em sensibilidade romântica. Mas ainda que travistamos nossos interesses e desejos mais mesquinhos em qualquer ilusão de generosidade, desinteresse e moralidade, eles continuam a ser atos instintivos, ainda que sonhemos com lirismos inalcançáveis. Ou em outras palavras, ainda que transformemos isso em felicidade.

Mas voltando a idéia de que a busca pela felicidade não existe, Nietzsche é realmente claro quando se posiciona contrário a esta definição em Ecce Homo (pág. 78) – este livro é lindo.

“As sentenças, sobre as quais em última análise o mundo inteiro está de acordo – sem contar os filósofos-do-mundo-inteiro, os moralistas e outros cabeças ocas: cabeças de repolho -, em mim parecem simples ingenuidades do engano: por exemplo aquela crença que assegura que “egoísta” e “altruísta” são antônimos, enquanto o ego em si seria apenas uma “fraude ainda maior”, um “ideal”...Não existem nem ações egoístas, nem ações altruístas: os dois conceitos são contra-sensos psicológicos...Ou a sentença “o homem luta pela felicidade”....Ou a sentença “disposição e indisposição são antônimos”...A Circe da humanidade, a moral, falsificou – desmoralizou – todas as faculdades psicológicas até a raiz, até aquele disparate terrível de que o amor tenha de ser “altruísta”....”

E então penso que o homem busca a felicidade, mas que essa tal felicidade não existe. Não existe porque é apenas o nome do ideal que inventamos para continuar vivos. Inventamos regras que nos aprisionem e garantam uma vida ética e feliz. Chamamos essa nossa invenção maluca de busca pela felicidade: o freio nas vontades, a derrota no enfrentamento das margens. E então o homem inventa que busca uma coisa que não existe.

Pelo que entendi do que você falou, para Nietzsche, o homem nem busca felicidade nenhuma, nós que inventamos isso. Essa busca. Então não sei se pensamos a mesma coisa, embora eu ache que estou por estas bandas.

Não resisto, por fim, de citar mais um pequeno trecho do Ecce Homo, lá pra frente, na página 148:

“Na grande economia do todo, os horrores da realidade (nas emoções, nas cobiças, na vontade de poder) são incalculavelmente mais necessários do que aquela forma da pequena felicidade, a assim chamada “bondade”; é preciso até mesmo ser indulgente para chegar a conceder a esta última um lugar que seja, pois ela é condicionada pelo caráter mentiroso do instinto”.

Um abraço e vamos em frente,

Natachy

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