quarta-feira, 20 de abril de 2011

TCD Paidéia - Natachy Petrini


INTRODUÇÃO


A palavra Paidéia não possui nenhuma representante em língua portuguesa que traduza a sua complexidade dentro da sociedade grega. No entanto, em termos gerais, podemos dizer que a Paidéia constitui todo o processo de formação do indivíduo, para que este reúna condições de alcançar a sua Areté. Assim, é necessário que analisemos estes dois termos que são parte fundamental para a compreensão a que nos dispomos com este trabalho: a importância da relação entre filosofia e educação.
Paidéia é um termo grego que passou a ser utilizado por volta do século V a.C e que na época, fazia menção apenas à criação de meninos e ao período em que eram educados no seio familiar. Hoje, o entendimento que fazemos deste conceito refere-se ao processo educacional ao qual o indivíduo é submetido em busca dos ideais de uma sociedade. Já Areté é um termo que designa o ideal, a excelência, a virtude e faz referência ao mérito, ao valor a que o indivíduo deve atingir na sociedade.
De posse da conceituação básica sobre Paidéia e Areté, nosso objetivo será realizar uma síntese das transformações sofridas na sociedade grega clássica, demonstrando como a filosofia sempre esteve atrelada à educação e como a relação indissociável entre educação para filosofia e filosofia para educação pode ser pensada atualmente. Para tanto, realizaremos um breve apanhado histórico sobre a sociedade grega, as Paidéias Homérica, Política, Sofística e Socrática, as mudanças conceituais da areté pretendida pelo povo grego e sobre como poderemos pensar a interação filosófica dentro deste contexto educacional.

O conceito de Paidéia
Paidéia é o termo que designa o modelo educacional grego voltado para o desenvolvimento do indivíduo, embora esta definição seja incompleta, uma vez que quando nos referimos à educação, refletimos sobre ela através de uma etimologia moderna que é incapaz de traduzir o que era a formação cultural do homem na sociedade grega. Nas palavras de Werner Jaeger:

Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os Gregos entendiam por paidéia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez. (Jaeger, 2010, p.02).

            Através da paidéia, o povo grego procurava desenvolver as potencialidades do Homem, oferecendo ferramentas que permitissem a construção do conhecimento e o alcance da areté, ou seja, “o conjunto de valores (físicos, psíquicos, morais, éticos, políticos) que forma um ideal de excelência e de valor humano para os membros da sociedade” (CHAUÍ, p. 495).
A partir disso, podemos relacionar a construção do ideal de homem com as transformações sociais que iam ocorrendo na Grécia, muito influenciadas pela transposição gradual do pensamento mítico para a racionalização lógica da concepção grega de mundo, onde o modelo de excelência que era esperado do cidadão não era estável, recebendo várias abordagens ao longo do tempo histórico.
Assim, observamos no decurso da história da filosofia que a educação sempre esteve atrelada ao pensamento filosófico, onde importantes pensadores auxiliaram no processo de construção da sustentação argumentativa da areté, que ia mudando conforme o desenvolvimento das cidades e os interesses de seus governantes. Com isso, podemos afirmar que o modelo de virtude que era esperado do homem grego foi se transformando de acordo com as convenções sociais, sendo diretamente influenciado pelas correntes filosóficas existentes, bem como influenciando o modo de pensar destes filósofos. Esta relação praticamente indissociável entre educação e filosofia é melhor identificada quando nos debruçamos sobre os períodos da sociedade grega clássica, atestando a importância da filosofia para a estruturação da paidéia.
Paidéia Homérica - Areté Aristocrática
            Na Grécia aristocrática, a educação visava à construção da Areté de bravos guerreiros, valentes defensores dos valores impostos pela nobreza e fisicamente preparados para um iminente combate. A coragem era questão de honra, era ser bom. A "educação" nessa época não tinha a proposta de formar indivíduos conscientes e sim normatizar o padrão do ideal de homem, da areté aristocrática, com todas as exigências impostas para a formação de um belo e bravo combatente. Além de ter que ser honrado, belo, bom, bravo e heróico, o guerreiro tinha a responsabilidade de defender a nobreza, participando do restrito círculo aristocrata, onde senhores de escravos unidos por laços de sangue se impunham, alcançando sua areté ao alegarem serem protegidos pelos deuses.
            Muito deste conhecimento histórico e filosófico que temos sobre o período compreendido entre o século XII e VIII a.C., advém das análises dos poemas atribuídos a Homero, nas obras Ilíada e Odisséia. Nessas epopéias homéricas, podemos observar o esboço do ideal educativo grego através da exaltação à coragem guerreira do personagem Aquiles, que munido de nobres valores, superioridade física e intelectual, torna-se o herói cujo comportamento deve ser exaltado e imitado pelos jovens gregos.
            Desta maneira, ao analisarmos as condições sócio-políticas da Grécia homérica, veremos que os ideais de virtude e a conquista da areté exigida aos nobres e guerreiros condiziam com a necessidade de manutenção do poder aristocrata e com o imaginário coletivo mítico que atribuía aos deuses o surgimento de todas as coisas. Numa sociedade de possibilidades iminentes de combate, a preparação física e intelectual dos gregos (através da música, poesia e ginástica) constituíram o primeiro modelo de Paidéia grega, formatando o ideal de excelência e disciplina que se esperava do cidadão, à imagem e semelhança da nobreza.
           
Paidéia Democrática - Areté Política
            A partir das contribuições dos reformadores Sólon em 594 a.C e Clístenes em 510 a.C, a sociedade grega foi se adaptando a um novo espaço político: a pólis. Com o advento da democracia, a soberania dos nobres dá lugar à soberania das leis, submetendo a elas todos os cidadãos, independentemente de sua linhagem ou formação (lembrando que nesta época, não eram considerados cidadãos as mulheres, os escravos, as crianças e os estrangeiros).
Neste novo cenário, a antiga areté aristocrática não atendia mais aos interesses da pólis, onde através da educação, deu-se início a um novo processo para formação de bons cidadãos, visando a areté política. Deste modo, o novo ideal de homem passou a ser o bom cidadão, onde a Paidéia teve que adaptar-se de forma a buscar a excelência destes cidadãos: tornando-os bons oradores, obedientes às leis da pólis e participantes da vida política:

Ora, numa sociedade urbana, comercial, artesanal e democrática como Atenas, a antiga areté já não fazia sentido, perdera seu lugar (...). Sem dúvida, a cidade precisa de guerreiros belos e bons, mas precisa, antes de tudo e acima de tudo, de bons cidadãos. Para o cidadão da democracia, a areté aristocrática é inaceitável, pois fundada nos privilégios do sangue e das linhagens. (CHAUÍ, p. 157).

            Com as mudanças sociais ocorridas na pólis, tanto o conceito de Paidéia como o de Areté ganharam novos valores, fazendo com que mais uma vez a excelência que se exigia do cidadão atendesse ao modelo estrutural do sistema político vigente. Se antes o ideal de virtude pretendido era a bravura, coragem, beleza e obediência aos dogmas míticos, agora os bons cidadãos deveriam ser críticos, analíticos, atuantes nos costumes democráticos da época, além de exercerem lógica e racionalmente as estruturas míticas que permeavam a sociedade grega. Assim, somente mediante o exercício de seus direitos e deveres o homem poderia alcançar sua virtude cívica, utilizando-se para tanto da qualidade da palavra e do poder da oratória.

Paidéia Sofística versus Paidéia Socrática
Com o desenvolvimento da pólis e a instauração do processo democrático na Grécia, a fluência da oratória foi se tornando determinante para a conquista do novo ideal de Areté pelos cidadãos. Uma vez que o novo ideal grego era a formação de cidadãos participantes e tendo em vista que essa participação se dava de maneira democrática nas assembléias, a qualidade dos discursos proferidos em público era fator determinante para a tomada de decisões, onde a capacidade de argumentar dos homens gregos era a responsável por salvar ou condenar um acusado, decidir pela entrada ou declínio em uma guerra etc.
            Neste cenário em que a palavra ganha força, surgem os sofistas, mestres em retórica e dialética. Estrangeiros, traziam para a Grécia seus conhecimentos já desenvolvidos sobre medicina e a prática de observação, erro-tentativa que dela decorriam.
Com os sofistas surge a educação normatizada e possível a qualquer indivíduo, uma vez que estes pensadores pregavam a democratização do conhecimento, causando a primeira grande revolução nas práticas de ensino. Este período da filosofia é marcado pelo embate entre as técnicas de oratória e persuasão sofísticas e o método de ensino socrático. Entre os sofistas, em especial Protágoras de Abdera e Górgias de Leontini, a premissa era a de não haver verdades eternas e certezas que fossem irrefutáveis pela argumentação. São considerados os primeiros professores e foram criticados por cobrar pelo ensino e defender teses contrárias que iam de encontro ao enfrentamento da busca pela verdade universal da época.
Por outro lado, Sócrates tem sua imagem vinculada por Platão e seus admiradores, como de fato o primeiro educador. Não afirmava verdades, mas acreditava em sua busca incessante. Ou seja, sua filosofia era busca e não resposta, onde através da ironia e da maiêutica, interpelava seus interlocutores com questionamentos que os faziam duvidarem de seus conceitos para depois entrarem no processo de auto-conhecimento e reestruturação de seus valores.
Com isso, podemos afirmar que, ao passo em que os sofistas se consideravam professores e proferiam verdades móveis e relativas, Sócrates se recusava ao papel de professor, afirmando a existência de uma verdade interna essencial, com uma busca incessante e de trajeto contínuo, sem respostas prontas a serem ensinadas.

Conclusão: A importância da filosofia para o desenvolvimento da Paidéia
Tendo em vista este panorama, podemos perceber a influência da filosofia na construção da percepção que os gregos formavam sobre si e sobre o mundo, influenciando de maneira definitiva a Paidéia grega, ou seja, o conjunto de valores e exigências físicas, intelectuais e morais para a conquista da Arete, a excelência de virtude do cidadão.
            Podemos considerar ainda, que a normatização da educação teve origem na Paidéia. Analisando a história grega, observamos que os conceitos de excelência de homem e os modelos ideais advindos desta idéia e que passavam a ser obrigatórios a todos os cidadãos, acompanhavam obrigatoriamente as mudanças da sociedade. Ou seja, os modelos de formação do homem grego estavam intrinsecamente atrelados às mudanças sociais, fazendo que seja válido considerarmos a tríade básica analítica sobre este período: educação-sociedade-filosofia.
No entanto, embora as raízes da educação moderna tenham sido projetadas na Paidéia grega, atualmente observamos a separação conceitual e prática entre educação e filosofia. No Brasil, por exemplo, apenas recentemente o ensino da filosofia foi novamente inserido no plano curricular nacional.
            É difícil analisarmos a associação intrínseca entre filosofia e educação a partir de nosso olhar moderno, haja vista que em razão do exercício de uma cultura fragmentária e individualizada, consideramos com conceituações diferentes, o que para os gregos fazia parte do mesmo princípio de formação cultural. No entanto, é fundamental que pensemos esta relação, dada a importância desta na Paidéia grega e no pensamento crítico que podemos desenvolver na comparação com a educação atual.
            Muito se fala da estrutura da educação moderna, bem como sobre a qualidade do ensino. No entanto, se seguirmos a linha de pensamento aqui desenvolvida, de que a educação é norteada, desde sempre, pelos valores do poder vigente, poderemos arriscar a análise de que então a educação atenda ao ideal moderno de nossa sociedade: renda, empregabilidade e mobilidade social. Assim, pode-se considerar que a reflexão mais apropriada a ser realizada neste contexto, não seja sobre os mecanismos de ensino-aprendizagem e sim sobre os ideais objetivos de sua atuação.
            Assim, esta análise nos remete ao objetivo inicial a que nos propusemos: o estudo da importância da filosofia para a educação grega e contemporânea. Se podemos facilmente identificar na Paidéia a relação entre a filosofia como geradora de conhecimento e a educação como fonte de difusão dos valores e dos ideais que eram pensados pelos filósofos, é porque essa relação era presente na sociedade grega. Ou seja, a formação do homem não visava atender somente a uma sistematização de mercado, como atualmente. A educação era vista como um processo integrado e eficiente das competências, levando à construção do conhecimento pelo indivíduo e a análise crítica de seus valores em sociedade.
            Desta maneira, podemos refletir sobre as condições educacionais em todo o ocidente, levando-nos a crer que a dissociação entre filosofia e educação provocou o enfraquecimento do entendimento crítico por parte dos alunos, que por não fazerem parte de uma cultura que analisa os pormenores de seus dogmas e constituição, absorvem os preceitos que lhes são apregoados sem quaisquer investigações de cunho filosófico.
Podemos ainda refletir sobre os modelos de Paidéia e areté da Grécia e associá-las com os métodos modernos de ensino. Atualmente estamos mais próximos da Paidéia homérica do que dos conflitos morais e técnicos entre sofistas e socráticos, haja vista a passividade com que recebemos e repassamos o ensino que nos é fornecido. Muito embora se considere que a educação moderna receba os contornos da educação sofística, em razão do próprio preconceito e perjúrio formado historicamente contra esta classe de pensadores, acreditamos que os alunos da sociedade atual não possuam sequer ferramentas que os levem a argumentar teses contrárias, como ocorria com os sofistas. Tampouco podemos comparar os alunos da sociedade moderna com os princípios norteadores da filosofia de Sócrates. Podemos observar que os alunos não são educados para o exercício de auto-conhecimento e tampouco buscam o entendimento de qualquer verdade – nem eterna, nem móveis. A cultura moderna faz com que os alunos busquem a educação como ferramenta de promoção social (dadas as desigualdades promovidas pelo Estado e pelo sistema econômico vigente). Os alunos buscam a formação de sua força de trabalho, a especialização de suas técnicas e não a formação cultural que os façam questionar seus lugares na sociedade.
Assim, concluímos que os fatores que fizeram da Paidéia grega o modelo de excelência educacional foi a presença dos filósofos que contribuíram com suas correntes filosóficas para a sociedade, bem como a influências das questões sociais no pensamento destes filósofos. Portanto, a educação atual poderia ser revista de forma a provocar uma reflexão dos componentes de construção do conhecimento, fazendo mais do que inserir a disciplina de Filosofia nos currículos escolares, mas, sobretudo, incluir o olhar filosófico de questionamento, observação e investigação, no processo de ensino-aprendizado moderno.

 BIBLIOGRAFIA

CHAUÍ, Marilena. Introdução á História da Filosofia: Dos Pré-Socráticos a Aristóteles. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

E-REFERÊNCIAS

< http://www.jhlf.net/Filosofia/paideia.htm > Acesso em 03 abr. 2011-04-14












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